A relação de amor e ódio entre videogames e cinema

Por que é tão difícil adaptações de uma mídia para outra darem bons resultados.

em 31/05/2016

Em um mundo totalmente multimídia, como o que vivemos atualmente, basta uma produção cultural fazer sucesso em determinado meio que logo surgem interessados em levá-la para outros universos. Seja com o objetivo de apresentar a história para públicos diferentes ou simplesmente visando o lucro, o fato é que está cada vez mais comum vermos livros virando filmes, jogos de videogame se transformando em desenhos animados, revistas em quadrinhos ganhando seus seriados, entre diversas outras possibilidades.


Analisando todas as adaptações, é fácil apontar a associação entre games e cinema como uma das que geram as maiores polêmicas. Se realizarmos entrevistas com os fãs das jogatinas virtuais, é quase certeza que todos poderão citar alguma experiência traumática envolvendo jogos que viraram longas metragens ou vice-versa. Por outro lado, também é verdade que existem muitos exemplos que deram certo e mostram que é, sim, possível realizar essa importação. Afinal, o que explica a relação de amor e ódio entre videogames e cinema?

O que pensam os produtores

Quem observa por fora o trabalho de levar uma história dos consoles para as telonas pode pensar que é tudo muito fácil e que os fracassos são causados por descuidos ou preguiça da equipe de produção. Bastaria os diretores e roteiristas do filme dedicarem algumas horas para experimentar o jogo e conhecer bem a obra que irão adaptar para que o resultado final estivesse isento de críticas negativas. Mas não é bem assim que as coisas funcionam, e existem diversos obstáculos pelo caminho.


Jogos e cinema são duas mídias que parecem idênticas para quem as consome, mas são formas de arte totalmente diferentes de serem produzidas. Recentemente, Shigeru Miyamoto concedeu entrevista para a revista Time e explicou exatamente quais são as particularidades entre trabalhar com videogames e outros meios de comunicação. Segundo o “pai” do Mario, as peculiaridades já começam na maneira como interagimos com cada um deles.
"Filmes e livros são meios passivos e os criadores dessas mídias podem controlar como suas histórias são reveladas ao público: de forma independente ao que o espectador imagina que acontecerá na sequência. Em comparação, é mais difícil para nós criarmos um tipo de entretenimento que força os jogadores a abraçarem nossas próprias expectativas sobre como eles devem experimentar as histórias, pois os jogos são um meio ativo em que os gamers pensam de forma independente sobre a ação a ser tomada em seguida”, detalhou Miyamoto.
O produtor foi além e também falou que as próprias imagens usadas nos filmes e nos jogos acabam influenciando o expectador de modos totalmente distintos. “Qualquer que seja o meio que estivermos falando, inspirar a imaginação do público além daquilo que eles já leram ou viram e levá-los a ficar envolvidos é a essência fundamental do entretenimento. Apesar de os livros serem constituídos apenas por palavras escritas numa página, eles têm o poder de desbloquear as imaginações de seus leitores de uma maneira ilimitada, ainda mais do que os filmes ou games, que têm a vantagem de contar com imagens. Imagens essas que têm a capacidade de passar mensagens mais facilmente a um vasto público. Jogos de videogame, em contrapartida, têm a capacidade única de gravar as imagens na memória do jogador devido ao seu papel ativo na escolha do caminho que os levou a cada lugar”, analisou.
“É na minha área que acho que sou bom. Então, não tenho a ilusão de que me tornaria um diretor de filmes ou escritor de livros", Shigeru Miyamoto.


Por fim, a principal mente criativa da Nintendo foi questionada se já havia pensado em tentar produzir materiais para mídias diferentes. “É na minha área que acho que sou bom. Então, não tenho a ilusão de que me tornaria um diretor de filmes ou escritor de livros", respondeu Miyamoto. Lendo as falas de alguém que vive diariamente a produção de videogames, é possível afirmar, com toda a certeza, que cinema e jogos apresentam maneiras distintas de narrativas e geram tipos diferentes de sentimentos em quem os consome. É por isso que nem sempre o envolvimento do criador de determinado jogo na adaptação cinematográfica de sua obra é sinônimo de sucesso.

Por que as adaptações costumam falhar

Transformar um filme de grande sucesso de bilheterias em um jogo quase acabou com a indústria dos videogames para sempre. A ideia da Atari de levar o longa E.T. — O Extraterrestre para seu console tinha tudo para dar certo, mas a realidade se mostrou bem cruel. E.T. é considerado, até hoje, um dos piores títulos de todos os tempos. Seu fracasso foi tamanho que o estúdio teve que recolher todos os cartuchos que acabaram encalhados nas prateleiras. Para tentar apagar esse vergonhoso capítulo da história da Atari, as fitas foram enterradas no deserto do Novo México, nos Estados Unidos. Se já não bastasse, o episódio também deu início ao crash norte-americano dos jogos eletrônicos de 1984 — época em que quase todas as empresas de videogames dos Estados Unidos faliram.

Mesmo com todas as consequências negativas, as empresas não aprenderam a lição e continuaram apostando em produções de qualidade duvidosa. Tivemos Super Mario Bros., Street Fighter, Final Fantasy e Resident Evil como algumas das franquias que receberam filmes de gosto bem duvidoso. O caminho inverso também aconteceu, com filmes como Esqueceram de Mim, Exterminador do Futuro e Homem de Ferro ganhando jogos que deixam a desejar. Todos esses fracassos podem, basicamente, ser explicados de duas maneiras. A primeira é que os responsáveis pelas adaptações não investem o necessário no desenvolvimento do material por acreditarem que o nome e toda a fama que a obra original carrega são suficientes para alavancar as vendas do conteúdo importado para outra mídia. Isso pode até acontecer inicialmente, mas bastam aparecer as primeiras críticas negativas para que o desempenho comercial despenque e o produto entre para a galeria dos não recomendáveis.
Vamos colocar armas no filme do Mario, por que não?


Já a segunda maneira de desvendar o porquê das constantes falhas está relacionada a uma dúvida que, geralmente, surge logo no início da etapa de desenvolvimento: o filme baseado no jogo ou o game inspirado em algum longa será voltado para qual público? É totalmente diferente produzir para quem já conhece e é fã de determinada franquia e criar algo para aqueles que nunca ouviram falar do material de origem. Normalmente, as produtoras optam por tentar satisfazer a todos e, assim, aumentar substancialmente seus lucros. Quando na realidade acabam não agradando ninguém.

Vamos tomar como exemplo o filme Street Fighter — A Batalha Final, que segue a linha de tentar chamar a atenção de todos. A estrela principal é Jean-Claude Van Damme, famoso por seus papéis no chamado “cinema brucutu”, que foi muito popular nos anos 1980. Imagina combinar o nome de Van Damme e uma produção que traz no título “Briga de Rua”! É um prato cheio para quem gosta desse tipo de longa-metragem e nem sabe da existência da consagrada franquia de jogos de luta. A trama do filme tem poucas referências aos games para facilitar que todos compreendam a história sem maiores problemas.
Fã dos jogos ou não, fique bem longe desse filme.


Os produtores não se esqueceram daqueles que assistem à obra esperando ver os Hadouken e Shoryuken e colocaram alguns fan services que deixam qualquer um constrangido. O pior deles está no final da história: quem conseguiu assistir até a parte em que Van Damme, que interpreta Guile, invade a base de Bison percebeu que, aos poucos, os personagens vão trocando de roupa e colocando os uniformes usados nos jogos. Só não fica claro o motivo que faz os lutadores, no meio de uma operação militar, acharem mais importante mudar as vestimentas do que atacar o inimigo ou se proteger de explosões e tiroteios. A soma de um enredo extremamente superficial com elementos que agridem os fãs da série resultou em um filme que merece todas as avaliações negativas que recebeu — Tem média de aprovação de 20% e nota de 2,9 no site Rotten Tomatoes. A título de comparação, o filme Super Mario Bros. tem média de aprovação de 28% e nota de 3,7 no mesmo portal.

Outra curiosidade de Street Fighter — A Batalha Final é que o filme recebeu um game baseado na trama, ou seja, um jogo que foi inspirado em um filme que foi inspirado em outro jogo. Se o longa já é sofrível, não precisamos nem mencionar qual é a qualidade do jogo… Outro exemplo de jogo inspirado em filme que já é ruim e consegue ser ainda pior que o material de origem é X-Men Origins: Wolverine, lançado para diversas plataformas e baseado no longa de mesmo nome que é considerado um dos piores da história dos mutantes no cinema.
Se o filme já é ruim, imagina o jogo.

Histórias que deram certo

A saudosa era 16-bits nos presenteou com vasto material memorável e eterno. Quem teve um Super Nintendo ou um Mega Drive já jogou, ou pelo menos ouviu falar, dos famosos jogos da Disney. Aventuras estreladas por Mickey e sua turma eram sinônimo de sucesso naquela época. Não foi somente o camundongo que fez a alegria de adultos e crianças durante tardes inteiras de jogatinas, muitos dos filmes produzidos pelo estúdio também migravam para os videogames e resultavam em títulos que merecem figurar entre os melhores de cada console. A lista de exemplos conta com nomes como Aladdin, O Rei Leão, A Bela e a Fera, Pinóquio, Mogli — O Menino Lobo e Toy Story. As plataformas da geração seguinte, mais precisamente o PlayStation, também receberam alguns bons exemplares dessa escola, com destaque para Tarzan, Hércules e Toy Story 2.

Em comum, todos os jogos aproveitaram a mesma receita: aventuras do gênero plataforma, muitos colecionáveis, fases que remetem a passagens marcantes dos filmes e alguns poucos níveis que mostram coisas que não foram vistas nos cinemas. Toda a trilha sonora e cenário contavam com selo de qualidade da Disney, fazendo com que as pessoas se sentissem assistindo novamente aos filmes enquanto jogavam. Se a fórmula de sucesso já era conhecida e aproveitada, o que fez com que os bons games baseados em filmes se transformassem em mais coisa do passado do que do presente? A resposta para essa pergunta está em algumas tentativas ruins de inovar.
Quanta nostalgia...


Dois exemplos que deram errado e demonstram que tentar fugir do padrão nem sempre é bom são Monstros S.A., lançado para PlayStation, e Avatar, que conta com versões para diversas plataformas. Em ambos os casos, a tentativa foi de mostrar histórias que precedem aquilo que vemos nos filmes. Mas os resultados acabaram sendo desastrosos e estragaram dois longas que tinham potencial para serem transformados em jogos interessantes.

Ser fiel ao material de origem é indispensável para que a adaptação faça sucesso, mesmo entre aqueles que não conhecem a franquia. Apoiar-se em uma trama já consolidada e importá-la para outra mídia faz com que a história se desenrole de forma natural e agrade boa parte do público. Um dos melhores filmes baseados em jogos é Mortal Kombat, que contém pequenas falhas, mas retrata com precisão as batalhas pelo controle do Reino da Terra. Vemos Liu Kang, Sonya Blade, Johnny Cage, Raiden, Scorpion, Sub-Zero e Shang Tsung sendo interpretados por atores que parecem os personagens virtuais, todos os figurinos são bem trabalhados e a história é contada conforme aquilo mostrado nos videogames. Detalhe interessante sobre essa adaptação que poucos conhecem é que o próprio Ed Boon, um dos criadores da franquia, foi convidado para dublar Scorpion. O pedido, é claro, foi aceito.

Se as coisas deram certo no primeiro Mortal Kombat, o oposto aconteceu com a sequência, que recebeu o subtítulo A Aniquilação. Talvez cegos pela repercussão positiva do primeiro filme, os produtores logo trataram de providenciar uma continuação. Porém, as trocas no elenco — principalmente com a saída de Christopher Lambert do papel de Raiden — e o baixo investimento nos efeitos especiais — o duelo final entre as formas animais de Liu Kang e Shao Kahn beira o ridículo — fizeram o longa receber pesadas críticas negativas.

Quem também se deu bem na transição das telonas para os videogames foi um famoso agente que está a serviço secreto de Sua Majestade. GoldenEye 007, lançado para Nintendo 64 e bem fiel ao filme de mesmo nome, revolucionou o gênero FPS e é apontado, até hoje, como um dos principais jogos de tiro em primeira pessoa. Porém, fazer essa adaptação não foi nada simples. Martin Hollis, codesigner do clássico, recentemente falou sobre o processo criativo e os constantes pedidos da Big N para deixar a aventura o menos violenta possível. O próprio Shigeru Miyamoto entrou em contato com a equipe de desenvolvimento para sugerir que houvesse menos matança em close-up e que no final Bond cumprimentasse os inimigos no hospital. O primeiro pedido foi aceito, mas o segundo não, e, para resolver a questão, foi adicionada uma sequência de créditos no jogo apresentando todos os personagens como se fossem papéis representados por atores.

Se GoldenEye 007 é exemplo de ótima adaptação, o mesmo não se pode afirmar de outros títulos inspirados nas missões de James Bond. Muitos outros filmes do agente secreto viraram jogos, alguns até interessantes, mas nenhum chegou perto de repetir o sucesso de GoldenEye 007. O espião britânico não foi o único que viu seu trabalho virar game: o concorrente norte-americano Ethan Hunt, astro de Missão Impossível, também virou personagem virtual em um título lançado para Nintendo 64, PlayStation e Game Boy Color. O jogo até que é bom, mas nada de excepcional.
Apesar do desenvolvimento conturbado, o resultado foi lindo.

Apesar de ser importante a fidelidade ao material de origem, essa lealdade também é um grande desafio no momento de adaptar um jogo para o cinema. Principalmente nos lançamentos atuais, temos jogatinas que duram mais de dez horas e condensar tudo isso em uma produção de, no máximo, duas horas é tarefa complicada.

Recentemente, tivemos o caso de Os Cavaleiros do Zodíaco: A Lenda do Santuário — longa de 1h30 de duração que tenta contar a história detalhada em 32 episódios do anime. O filme acabou tendo um ritmo aceleradíssimo e com muitos furos, por isso, dividiu opiniões entre os fãs da obra. Essa mesma dificuldade acontece com os videogames: imagina como seria complicado levar The Legend of Zelda: Ocarina of Time — com suas dez dungeons — para as telonas sem comprometer a narrativa!

Profissional de Hollywood que consegue fazer bem esse encaixe de muito material em pouco tempo é Peter Jackson. O diretor conseguiu transformar o imenso livro de O Senhor dos Anéis em três bons filmes, mesmo tendo que desprezar muito do conteúdo da obra de J. R. R. Tolkien. Os premiados longas também ganharam versões para o PlayStation 2, Xbox, GameCube e Game Boy Advance. The Lord of the Rings: The Two Towers e The Lord of the Rings: The Return of the King conseguem transmitir a sensação de estar dentro de uma batalha na Terra-Média. A Guerra por Um Anel também rendeu bons games spin-off, como o recente Shadow of Mordor. Por falar em livros que viram filmes e depois se transformam em jogos, não podemos deixar de lembrar toda a saga Harry Potter. O bruxinho recebeu boas aventurar em diversas plataformas que colocam o jogador dentro de Hogwarts.
Escolha seu guerreiro e salve a Terra-Média.

Filmes sobre videogames

Além das produções baseadas nos jogos, também temos aqueles filmes que aproveitam a temática videogame e costumam ter melhores repercussões — claro que dessa lista estamos excluindo o recente Pixels. Alguns bons longas que merecem ser assistidos por aqueles que não dispensam uma jogatina é a animação Detona Ralph e o clássico O Gênio do Videogame, que já passou incontáveis vezes na Sessão da Tarde.
A Disney confirmou que Detona Ralph receberá uma continuação.

O que esperar para o futuro?

Em 2016, as salas de cinema de todo o mundo devem receber os fãs de videogames para dois lançamentos importantes: Warcraft — O Primeiro Encontro de Dois Mundos e Assassin's Creed. Ambos criaram expectativas positivas com os trailers divulgados até agora e prometem ser redenção definitiva dos filmes baseados em jogos. Para quem pensa assim, as notícias não são tão boas. Pelo menos no caso de Warcraft, as críticas estão sendo negativas e dizem que o longa é voltado apenas para os fãs.
Motivo de esperança...


A revista Variety publicou: "Hollywood continua imbatível em transformar videogames de sucesso em filmes impossíveis de se assistir. Os mais de dois mil efeitos especiais produzidos para o longa terminam parecendo com propagandas de jogos no iPhone". O site Hollywood Reporter segue a mesma linha e destaca: "O filme não é envolvente e, se você nunca jogou 'WoW', não vai se importar com 'Warcraft'". O lado positivo apontado pelos críticos é a elaboração dos personagens, que conseguem demonstrar bem seus sentimentos e personalidade.

Resta-nos torcer para que os críticos estejam exigentes demais e que Warcraft seja sim um bom filme. Caso WoW não consiga preencher a lacuna, fica o desejo para que Assassin's Creed desempenhe o tão esperado papel positivo.
... ou mais decepções?


Outra obra que está em produção e merece nossa atenção é o filme Jogador Número 1, baseado no livro homônimo de Ernest Cline. Com previsão de estreia para dezembro de 2017 e direção de Steven Spielberg, o longa conta a história de uma desanimadora Terra no ano de 2044, quando fome, guerras e desemprego empurraram toda a humanidade para um estado de apatia nunca antes visto. Wade Watts é mais um dos que escapa da realidade passando horas e horas conectado ao OASIS — uma utopia virtual global que permite aos usuários serem o que quiserem. O lugar é inspirado nos filmes, videogames e cultura pop dos anos 1980.

A Nintendo também manifestou, recentemente, o desejo de ingressar no universo cinematográfico. Pessoalmente, acredito que dessa iniciativa podem render bons frutos. A Big N tem cuidado especial com todas as suas franquias e não vai deixar que algo como o bizarro filme de Super Mario Bros. se repita. Quando vai se aventurar por campos desconhecidos, a companhia de Kyoto costuma procurar empresas especializadas na área, assim como foi a parceria com a DeNA para desenvolvimento de aplicativos mobile. Tudo isso faz com que o cenário seja promissor.

Esperamos que essas iniciativas se mostrem acertadas no futuro, para recebermos, cada vez mais, conteúdos multimídia de qualidade. A esperança que fica é que a relação entre videogames e cinema seja cada vez mais de amor e menos de ódio.

Revisão: Vitor Tibério

É jornalista e obcecado por games (não necessariamente nessa ordem). Seu vício começou com uma primeira dose de Super Mario World e, desde então, não consegue mais ficar muito tempo sem se aventurar em um bom jogo. Diretor de Redação do Nintendo Blast.
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