Além da humanidade
O jogo se passa num futuro distante, numa sociedade transumana. Não existem mais seres humanos como conhecemos; o homem transcendeu sua natureza biológica. A identidade terráquea ainda existe, mas os antigos habitantes do planeta Terra modificaram seus corpos para poder explorar as estrelas. Ninguém morre ou nasce nessa nova conjuntura. Quando alguém tem seu corpo destruída, sua mente é colocada em um novo e a vida prossegue.
Com o Sistema Solar ao dispor do jogador, é possível ir para qualquer lugar na ordem que quiser. A jogabilidade é básica e simplista até certo ponto. Clique em algum planeta, explore até acontecer algum evento interessante. Repita até conseguir alguma missão.
Muitos eventos são apenas uma forma de construir o mundo e contextualizá-lo, dando informações da história e sociedades dessa era distante. Com um pouco de sorte, seu personagem pode ganhar itens, novas habilidades ou modificações para o corpo, o que pode ter efeitos em eventos futuros — e até lhe salvar da morte em algumas ocasiões.
As missões servem como um guia dentro da trama e lhe dizem aonde ir e o que explorar primeiro. Consegui-las é tão aleatório quanto os eventos comuns e muitas delas são perigosas, levando seu personagem a óbito. Não que o resto do Sistema Solar seja seguro: ignorar as missões e explorar os planetas como bem quiser também traz seus perigos particulares, muitos deles mortais.
Morrer também depende muito da (má) sorte. Você pode estar num cinturão de asteroides, apertar “explorar” e o RNG lhe presentear com um meteoro vindo em sua direção ou o vazamento de uma carga de antimatéria. Não há muito o que fazer nesses casos, a não ser aproveitar o novo corpo ao qual o último backup de sua mente será transplantado.
A imaginação como combustível
O minimalismo mecânico se estende para os recursos visuais (que estão presentes, mesmo sendo um text adventure). Os planetas são apenas círculos, com circunferências representando suas órbitas.
Onde o jogo se sobressai mesmo é na escrita. Sua recompensa ao explorar é mais e mais texto. De certa maneira, é como se você estivesse jogando um livro interativo. Imagine um romance em que você pudesse direcionar o protagonista, dizer aonde ele deve ir primeiro naquele mundo construído pelo autor. Os escritores realmente fizeram um ótimo trabalho na abordagem de temas como pós- e trans-humanismo, criando um universo convincente e uma excelente peça de ficção científica.
Um recurso interessante usado aqui é a própria imaginação do jogador, ou, nesse caso, leitor. As informações dadas são o suficiente para você saber como o mundo funciona, mas muitas lacunas estão lá propositalmente, para que sua mente preencha. Um bom exemplo de como uma narrativa não precisa de elementos audiovisuais para instigar alguém — algo que, vejam só, livros fazem com louvor há mais de dois milênios.
Mas, no final das contas, Sun Dogs ainda é um jogo eletrônico. Afinal, a natureza inerente dessa mídia não são os gráficos ou música, mas a interatividade. Por essa definição, uma série de textos interativos também é um jogo, por mais próximo da literatura que possa ser. Em casos assim, mais importante do que os aspectos audiovisuais é como o título faz o jogador pensar visualmente e pintar em sua mente o mundo descrito, uma habilidade que os membros do estúdio Royal Polygon demonstram dominar com louvor.
Daria um bom livro
Entretanto, a proximidade com a literatura causa problemas para Sun Dogs, especialmente se o compararmos com um livro “comum”. Uma particularidade dos videogames acaba ficando muito evidente aqui: jogos bloqueiam o progresso do jogador fazendo testes arbitrários de habilidade. Seja num Final Fantasy, God of War ou The Secret of Monkey Island, se você não resolver determinado puzzle ou vencer certa batalha, é impossível prosseguir na história.
Sun Dogs não é a exceção à regra. Se você não souber jogar, fizer uma determinada sequência de eventos ou não tiver certos itens, não poderá dar continuidade à trama. Isso não é problemático por si só — afinal, todo jogo faz isso. O problema é a forma injusta como seu progresso é impedido. Na maior parte das vezes, você está à mercê da pura sorte. Você pode morrer ao simplesmente entrar em um planeta e explorá-lo — perdendo assim todos os seus itens e modificações corporais. Até é possível evitar alguns cenários mortais atendendo condições prévias… que também dependem de eventos aleatórios. Se o RNG não for com a sua cara, prepare-se para perder um bom tempo.
Curiosamente, isso faz o jogo ser prejudicado justamente por causa de um de seus pontos fortes: a história é excelente. De fato, tão excelente que acaba se tornando uma fonte de frustração toda vez que seu progresso nela é impedido por eventos arbitrários e aleatórios. Enquanto em um livro comum você só teria que virar uma página para saber o que acontece depois, aqui é preciso brincar de roleta-russa a cada passo dado.
Sun Dogs é um ótimo experimento, numa tênue linha que separa text-adventures da literatura. Ele acaba falhando tanto como livro quanto como jogo, mas tem seus méritos por tentar fazer algo novo. Agora, por favor, adaptem a história para um livro comum!
Prós
- Muito bem escrito;
- Excelente peça de ficção científica;
- Mistura criativa de text adventure e mundo aberto.
Contras
- Mortes aleatórias e injustas;
- Torna-se frustrante rapidamente.
Sun Dogs — PC — Nota: 6,0