Vida e Morte: Como os games bagunçam nosso Eros e Tânatos

Duas das maiores certezas do universo tomam proporções diferentes no mundo eletrônico.

em 12/12/2015

O conceito de vida e morte nos games é algo bem diferente da nossa realidade. O mundo eletrônico cria um ambiente onde apenas a imaginação é o limite. A vida é algo precioso, e cada passo em uma aventura deve ser dado com cuidado; não com temor da morte em si, mas da possibilidade de perder e ter que reiniciar um percurso complicado. O problema dessa visão é que ela não condiz com a essência de nossa mente e pensamento. Os games viram esses conceitos de vida e morte de cabeça para baixo e vamos tentar entender como e por quê.

A essência da psique-humana

Antes de começarmos a analisar como a mecânica dos jogos afetam essa parte especial da nossa psicologia, precisamos compreender dois conceitos: Eros e Tânatos. De acordo com a teoria de Freud, a psique humana é dividida entre duas pulsões, a pulsão da vida, Eros e a pulsão da morte, Tânatos. As duas pulsões derivam diretamente das pulsões do eu, que são o sentido de autoconservação e nossas necessidades básicas como fome ou sede, ou seja, nossos instintos mais básicos.

Os dois conceitos receberam inspiração direta das divindades da vida e do amor e da morte, respectivamente. Todo ser humano tem sua porção de amor e ódio, sexualidade e agressividade, etc. Enfim, tudo é dualidade. Pode ser uma visão simplista para um mecanismo complexo como nossa mente, mas não há nada de “fácil” nessa forma de visualizar nossa psique. O principal problema que envolve as pulsões e afeta diretamente nosso desenvolvimento psicológico é a forma como essas porções são balanceadas ao longo de nossas vidas.
Ainda não entendeu muito bem como funcionam o Eros e Tânatos? Esse gráfico pode te ajudar.

Com isso, estamos querendo dizer que muito de um e pouco de outro nem sempre é a melhor opção. E isso vale mesmo no caso em pessoas que valorizam demais a pulsão de Eros. São aqueles indivíduos exageradamente otimistas, confiantes e, em certos níveis, até narcisistas. A mesma regra se aplica para quem supervaloriza seu pulso de Tânatos e vive uma vida imprevísivel, guiada por aproveitar apenas o presente e o que lhe dá prazer. Como já dizia o ditado “Tudo que é exagerado é errado”. Portanto, a chave para uma mente sã é o correto equilíbrio entre as duas pulsões.
Para Freud, nossa psique é dual e funciona com um pulso de vida e de morte.

Mas de nada adianta dizer que o equilíbrio é a solução se não basta apenas a força de vontade de um indivíduo para controlar suas pulsões, pois somos bombardeados a todo momento por fontes de influência externas que mudam a forma como as manejamos. Seja nosso círculo de amizade, internet ou redes sociais, tudo modifica o quanto uma pulsão está mais ativa que a outra. E é justamente nesse ponto que os videogames entram como um mecanismo de transformação surpreendente na mente daqueles que curtem uma boa jogatina.

“Eu morro mas não perco a vida!”

Agora que já sabemos como essas pulsões funcionam, fica fácil relacioná-los à ideia por trás da mecânica da maior parte dos videogames. No mundo eletrônico, normalmente seu personagem possui várias vidas, que podem ser perdidas por erros do jogador e o fazem repetir situações até que ele não morra em sua empreitada virtual. É uma ideia muito distante da realidade. Mesmo que alguns games criem punições extras para a morte dos jogadores, nada se compara ao fato de morrer no mundo real. Perder dinheiro, itens ou mesmo ter que recomeçar partes complexas da jogatina são formas que os games tentam colocar em nossa mente de que a morte tem sérias consequências.
Viver e morrer novamente: essa é a premissa da mecânica de muitos games.

Nos jogos de gerações passadas, a ideia de vida e morte era tão abstrata que tínhamos o sistema de coleta de vidas extras, o “continuar” e o eventual “game over”, caso o jogador não tivesse conseguido vencer sua jornada no número de vidas que possuía. Esse conceito mexia tanto com a psique dos jogadores, afastando os mais imersos nos games da realidade, que é normal encontrar atualmente uma forma mais “realista” na visão das pulsões dos games. Observando títulos como Assassin’s Creed, Bioshock e The Last of Us, a ideia de várias vidas ainda existe, mas não como antigamente. O game over é praticamente inexistente. A única punição que o jogador recebe ao morrer é ter que repetir ações ou um trajeto específico. A morte se torna algo banal.
Eu perdi as contas de quantas vezes vi Lara Croft morrer dolorosamente em Tomb Raider. Chegou um ponto que aquilo se tornou comum para mim.

Não vamos entrar no terreno de como a violência nos games pode afetar o comportamento dos jogadores, porque esse tema já foi discutido de forma exaustiva. Estamos focando em como toda a fórmula dos games consegue influenciar o balanceamento das pulsões do eu. Para cada jogador, a análise deve ser diferente, mas será que os jogos não estão pendendo a balança demais para a pulsão de Tânatos ao estimular a agressividade, o gosto e banalização da morte em troca de um prazer instantâneo de recompensa virtual?
A morte se torna algo tão comum em Dark Souls que a surpresa não é deixar de viver, mas sim continuar a respirar.

Certamente muitos podem argumentar que realmente a culpa é dos games e da forma como eles lidam com temas tão complexos, e haverão outros que dirão que tudo depende de como o jogador absorve esse tipo de experiência. Assim como eu havia comentado que a chave para uma boa psique é o equilíbrio entre as duas pulsões, a mesma dica vale para essa questão em particular. Talvez a forma de vermos tudo de um ponto de vista crítico é analisar como cada game afeta cada jogador. Mesmo porque não é todo mundo que vai jogar GTA e vai achar normal sair por aí atropelando e assaltando pessoas, não é mesmo?
Diferente da vida real, mesmo depois do Game Over, você pode reiniciar seu jogo e tentar novamente.


Revisão: Bruno Alves
Capa: Felipe Fabrício

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