Eu sempre achei os mocinhos chatos e improváveis, eles não respirariam cinco segundos fora da ficção. Quem não tem dois, sete, mil personalidades diferentes e conflitantes dentro de si, quem consegue ser sempre coerente e politicamente correto? São milhões de possibilidades de escolhas, algumas morais outras um vexame, capazes de deixar cicatrizes pelo resto da vida, de serem imperdoáveis e você ter que concordar com isso e sofrer as consequências.
História sombria e envolvente
Angels That Kill não é alegre e nem é bonitinho. É um soco na boca do estômago, são vários personagens desesperados destruindo a si mesmos e aos outros, e lamentando depois. Todos parecem ótimos, suas motivações, suas tentativas de redenção. Mas a real é que todos são escorregadios, resvalando nas poças e se afundando ainda mais.A partir daqui você pode encontrar alguns spoilers, nada que comprometa a experiência do jogo ou o fator surpresa, são apenas as funções dos personagens na história, o grande foco do jogo.O protagonista James Baley é um ex-boxeador afastado dos ringues. Ele matou outro cara durante uma luta. Foi um acidente, jura. Mas sua esposa não concorda. Tanto que ela fugiu com a filha do casal para só Deus sabe onde. Estava dormindo com outro cara também.
Agora Baley não tem mais nada, se tornou um alcoólatra e viciado em barbitúricos. Ele decide voltar para a pacata Noll City, para o começo. Aqui não é o filme de Digimon, não tem nenhum sentimento edificante nisso. Não tem nada de bom em voltar para a cidade que você abandonou e só volta porque não conhece mais ninguém e porque não tem onde cair morto.
No dia em que Baley volta para Noll City um homicídio tinha acontecido e as pessoas estavam apavoradas. O cara na poça de sangue era quem estava dormindo com a ex-mulher de Baley. Isso soa suspeito, não? A polícia também acha. Aliás, é impressionante como uma cidade com tão pouca gente tem tantos policiais. Quais são os elementos que compõe uma cidade? Segundo o escritor Doctorow na sua novela de estreia, Tempos Difíceis: uma igreja; um armazém; um bar; e, claro, uma prisão. O sentimento de estar sendo observado fica presente por toda a cidade, viaturas estão rondando e tiras, espalhados. Claro que você não é o culpado, o oficial só quer fazer umas perguntas e — POW — Baley arrebenta a cabeça dele com uma xícara. Com uma xícara de porcelana! Nada muito impressionante, claro, levando em conta que o Lucchesi foi “esfaqueado” com um par de óculos em O O Poderoso Chefão 3. Agora você é oficialmente um fugitivo da lei e controla esse imbecil do Baley, tentando provar sua inocência. Boa sorte.
Preto no branco
O que mais chama atenção nesse jogo de aventura em primeira pessoa é o visual, todas as construções são pretas ou cinzas. As pessoas são todas pretas com olhos brancos, o que é bem bizarro e aterrorizante. Então, caso você sofra de automatonofobia, que é o medo de figuras semelhantes a seres vivos, como palhaços, marionetes e esculturas de cera, o gênero vai passar de supense para terror. Isso fica ainda mais asfixiante quando você topa com figuras de autoridade, como os policiais. Isso é noir, um estilo de ficção policial nascido no cinema, marcado pelo contraste entre preto e branco e um forte sentimento de tensão, desesperança, depressão e corrupção. O próprio piano da trilha sonora do jogo fortalece isso, com uma ambientação muito bem executada.Quebrando o pescoço para fumar um cigarrinho. |
A única escapatória é o céu, de cor branca, que funciona como uma bússola. Pássaros voam em direção ao local do próximo objetivo, então caso você se perca, já que é tudo preto e cinza, é só segui-los. O ponto fraco mesmo do jogo são os modelos masculinos, todos estranhamente musculosos, como se Noll City fosse a cidade dos marombados. Aliás, só tem duas mulheres em Angels That Kill, e ambas em papéis insignificantes. Ponto negativo também, afinal, figuras femininas marcantes são uma característica do estilo noir.
Um ponto muito positivo foi eles intercalarem os capítulos entre caça e caçador. Jogue com o detetive Micheal Bickel, veterano do Vietnã, e descubra o quanto os mafiosos estão infiltrados na polícia. E descubra uma forma de pagar o que deve para eles ou você vai virar presunto. Então a investigação de Baley vai para segundo plano, enriquecendo a história com essa reviravolta. Isso causa surpresa e propõe uma reflexão sobre o estereótipo da figura do policial. Como bem disse o tira Adachi, em Persona 4: Golden (PSV), “ter entrado para a polícia não me torna algum tipo de agente da justiça”. É só uma profissão, e ele só queria ter porte de armas.
Realismo demais, realismo de menos
Com as fases dividindo os capítulos, a jogabilidade é muito prejudicada pelo realismo dos produtores. Controle Baley de ressaca e uma de suas pernas vai estar dormente, dificultando a locomoção. Controle Baley bêbado e os comandos são invertidos toda vez que você toca o teclado. Isso acaba se tornando mais uma firula e pode afastar alguns jogadores, mesmo que para o roteiro seja válido uma fase assim. Acho que forçaram a barra, talvez deixá-lo mais cambaleante, no entanto preservando os controles, fosse uma escolha mais viável do ponto de vista do jogador.Apesar de pombas indicaram o “X” do mapa, existem várias outras side-quests como dividir uma ceva com os mendigos ou descolar um rango para um menininho órfão, entre outras coisas aleatórias. Isso ajuda a quebrar o gelo e sair um pouco desse sentimento de que o mundo a sua volta está desmoronando, até porque é um jogo, e mesmo que ele seja ótimo em passar essa impressão de urgência, infelizmente o fato de você poder dar um rolê pela cidade ao invés de provar sua inocência deixa o título menos crível. Da mesma forma que grindar em Xenoblade Chronicles (Wii/New 3DS) e enfrentar os chefes com um nível muito mais alto é incompátivel com a credibilidade da trama – como em qualquer outro RPG – mas como é um jogo, não dá para escapar disso. Uma possibilidade talvez fosse tirar as side-quests de Angels That Kill, o que criaria outro problema: limitaria o mundo a sua volta, fazendo parecer que o ex-boxeador é o umbigo do universo.
Mesmo com falhas, até dentro do próprio estilo que o jogo quis se inserir, Angels That Kill apresenta uma história muitíssimo boa, crua e envolvente, com uma jogabilidade experimental inventiva e diversos finais. O jogo foi lançado no Steam em 20 de novembro, mas possui atualizações frequentes, quase que diárias, para incrementar o funcionamento, contando também com suporte à resolução 8k e 120 fps. Se você é fã do gênero policial, vale a pena conferir.
Que viagem. |
Prós:
- História envolvente, com teor pesado e adulto;
- Personagens bem construídos e multifacetados;
- Visual noir;
- Ótima ambientação. É incrível o que se pode fazer só com quatro paletas de cores, não é mesmo?
Contras:
- Muito depressivo, não recomendado para pessoas sensíveis;
- Velocidade de exploração da cidade comprometida pela jogabilidade experimental;
- Modelos de personagens muito homogêneos;
- Se você tem automatonofobia, melhor evitar Angels.
Angels That Kill — PC — Nota: 6.5
Revisão: Luigi Santana
Capa: Leandro Alves