Análise: Bandido ou mocinho? Em Angels That Kill, viva os dois lados da história

Neste adventure em 1ª pessoa, entre na pele de um ex-boxeador acusado de homicídio tentando provar sua inocência. E também na do detetive que está no seu encalço.

em 07/12/2015

Eu sempre achei os mocinhos chatos e improváveis, eles não respirariam cinco segundos fora da ficção. Quem não tem dois, sete, mil personalidades diferentes e conflitantes dentro de si, quem consegue ser sempre coerente e politicamente correto? São milhões de possibilidades de escolhas, algumas morais outras um vexame, capazes de deixar cicatrizes pelo resto da vida, de serem imperdoáveis e você ter que concordar com isso e sofrer as consequências.

História sombria e envolvente

Angels That Kill não é alegre e nem é bonitinho. É um soco na boca do estômago, são vários personagens desesperados destruindo a si mesmos e aos outros, e lamentando depois. Todos parecem ótimos, suas motivações, suas tentativas de redenção. Mas a real é que todos são escorregadios, resvalando nas poças e se afundando ainda mais.
A partir daqui você pode encontrar alguns spoilers, nada que comprometa a experiência do jogo ou o fator surpresa, são apenas as funções dos personagens na história, o grande foco do jogo.
O protagonista James Baley é um ex-boxeador afastado dos ringues. Ele matou outro cara durante uma luta. Foi um acidente, jura. Mas sua esposa não concorda. Tanto que ela fugiu com a filha do casal para só Deus sabe onde. Estava dormindo com outro cara também.

Agora Baley não tem mais nada, se tornou um alcoólatra e viciado em barbitúricos. Ele decide voltar para a pacata Noll City, para o começo. Aqui não é o filme de Digimon, não tem nenhum sentimento edificante nisso. Não tem nada de bom em voltar para a cidade que você abandonou e só volta porque não conhece mais ninguém e porque não tem onde cair morto.


No dia em que Baley volta para Noll City um homicídio tinha acontecido e as pessoas estavam apavoradas. O cara na poça de sangue era quem estava dormindo com a ex-mulher de Baley. Isso soa suspeito, não? A polícia também acha. Aliás, é impressionante como uma cidade com tão pouca gente tem tantos policiais. Quais são os elementos que compõe uma cidade? Segundo o escritor Doctorow na sua novela de estreia, Tempos Difíceis: uma igreja; um armazém; um bar; e, claro, uma prisão. O sentimento de estar sendo observado fica presente por toda a cidade, viaturas estão rondando e tiras, espalhados. Claro que você não é o culpado, o oficial só quer fazer umas perguntas e — POW — Baley arrebenta a cabeça dele com uma xícara. Com uma xícara de porcelana! Nada muito impressionante, claro, levando em conta que o Lucchesi foi “esfaqueado” com um par de óculos em O O Poderoso Chefão 3. Agora você é oficialmente um fugitivo da lei e controla esse imbecil do Baley, tentando provar sua inocência. Boa sorte.

Preto no branco

O que mais chama atenção nesse jogo de aventura em primeira pessoa é o visual, todas as construções são pretas ou cinzas. As pessoas são todas pretas com olhos brancos, o que é bem bizarro e aterrorizante. Então, caso você sofra de automatonofobia, que é o medo de figuras semelhantes a seres vivos, como palhaços, marionetes e esculturas de cera, o gênero vai passar de supense para terror. Isso fica ainda mais asfixiante quando você topa com figuras de autoridade, como os policiais. Isso é noir, um estilo de ficção policial nascido no cinema, marcado pelo contraste entre preto e branco e um forte sentimento de tensão, desesperança, depressão e corrupção. O próprio piano da trilha sonora do jogo fortalece isso, com uma ambientação muito bem executada.
Quebrando o pescoço para fumar um cigarrinho.
Fugindo do claro-escuro e milhares de tons de cinza, o vermelho é a única cor visível aqui, deixando o sangue um elemento destacado, bem parecido com o visual do filme Sin City (2005). Mas, mesmo com poucas cores, tudo é muito bem detalhado. Vários elementos tornam os cenários críveis, como garrafas, lixeiras e máquinas de refrigerante. Já as construções tem um nome na marquise, mas você vai penar para conhecê-las, são muitas, angulosas e pesadas, o que vai de encontro ao fato de Noll City ser a “prisão” de Baley.

A única escapatória é o céu, de cor branca, que funciona como uma bússola. Pássaros voam em direção ao local do próximo objetivo, então caso você se perca, já que é tudo preto e cinza, é só segui-los. O ponto fraco mesmo do jogo são os modelos masculinos, todos estranhamente musculosos, como se Noll City fosse a cidade dos marombados. Aliás, só tem duas mulheres em Angels That Kill, e ambas em papéis insignificantes. Ponto negativo também, afinal, figuras femininas marcantes são uma característica do estilo noir.

Um ponto muito positivo foi eles intercalarem os capítulos entre caça e caçador. Jogue com o detetive Micheal Bickel, veterano do Vietnã, e descubra o quanto os mafiosos estão infiltrados na polícia. E descubra uma forma de pagar o que deve para eles ou você vai virar presunto. Então a investigação de Baley vai para segundo plano, enriquecendo a história com essa reviravolta. Isso causa surpresa e propõe uma reflexão sobre o estereótipo da figura do policial. Como bem disse o tira Adachi, em Persona 4: Golden (PSV), “ter entrado para a polícia não me torna algum tipo de agente da justiça”. É só uma profissão, e ele só queria ter porte de armas.

Realismo demais, realismo de menos

Com as fases dividindo os capítulos, a jogabilidade é muito prejudicada pelo realismo dos produtores. Controle Baley de ressaca e uma de suas pernas vai estar dormente, dificultando a locomoção. Controle Baley bêbado e os comandos são invertidos toda vez que você toca o teclado. Isso acaba se tornando mais uma firula e pode afastar alguns jogadores, mesmo que para o roteiro seja válido uma fase assim. Acho que forçaram a barra, talvez deixá-lo mais cambaleante, no entanto preservando os controles, fosse uma escolha mais viável do ponto de vista do jogador.

Apesar de pombas indicaram o “X” do mapa, existem várias outras side-quests como dividir uma ceva com os mendigos ou descolar um rango para um menininho órfão, entre outras coisas aleatórias. Isso ajuda a quebrar o gelo e sair um pouco desse sentimento de que o mundo a sua volta está desmoronando, até porque é um jogo, e mesmo que ele seja ótimo em passar essa impressão de urgência, infelizmente o fato de você poder dar um rolê pela cidade ao invés de provar sua inocência deixa o título menos crível. Da mesma forma que grindar em Xenoblade Chronicles (Wii/New 3DS) e enfrentar os chefes com um nível muito mais alto é incompátivel com a credibilidade da trama – como em qualquer outro RPG – mas como é um jogo, não dá para escapar disso. Uma possibilidade talvez fosse tirar as side-quests de Angels That Kill, o que criaria outro problema: limitaria o mundo a sua volta, fazendo parecer que o ex-boxeador é o umbigo do universo.

Mesmo com falhas, até dentro do próprio estilo que o jogo quis se inserir, Angels That Kill apresenta uma história muitíssimo boa, crua e envolvente, com uma jogabilidade experimental inventiva e diversos finais. O jogo foi lançado no Steam em 20 de novembro, mas possui atualizações frequentes, quase que diárias, para incrementar o funcionamento, contando também com suporte à resolução 8k e 120 fps. Se você é fã do gênero policial, vale a pena conferir.
Que viagem.

Prós:

  • História envolvente, com teor pesado e adulto;
  • Personagens bem construídos e multifacetados;
  • Visual noir;
  • Ótima ambientação. É incrível o que se pode fazer só com quatro paletas de cores, não é mesmo?

Contras:

  • Muito depressivo, não recomendado para pessoas sensíveis;
  • Velocidade de exploração da cidade comprometida pela jogabilidade experimental;
  • Modelos de personagens muito homogêneos;
  • Se você tem automatonofobia, melhor evitar Angels.
Angels That Kill — PC — Nota: 6.5
Revisão: Luigi Santana
Capa: Leandro Alves

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