Tudo isso deixa o jovem desconfiado e apreensivo, mas não o impede de entrar em casa e encontrar Ine-san, a gentil governanta, caída próxima à porta de entrada. Após socorrê-la e ser avisado do perigo adiante, o rapaz dá os passos mais difíceis de sua vida, os quais o levam não só para os fundos do terreno, mas de encontro aos acontecimentos que virariam seu mundo de cabeça para baixo.
Ao chegar ao dojo, Ryo se depara com uma cena horripilante: seu melhor amigo, Fuku-san, é atirado violentamente para fora do prédio, enquanto seu pai batalha contra um estranho homem de vestimentas chinesas verde e preta, e acaba derrotado. Instintivamente ele se desvencilha dos seguranças que o seguravam na porta e tenta ajudá-lo, mas a tentativa é em vão, e serve somente para que ele seja usado como uma peça de chantagem nas mãos do invasor, que procura um misterioso “Espelho”.
Mesmo entregando a localização de tal artefato, o dia da família Hazuki termina de maneira trágica, pois Iwao é confrontado mais uma vez pelo inimigo, que o culpa pela morte de Zhao Sun Ming, recebe uma investida mortal e acaba morrendo nos braços de seu filho. Suas últimas palavras para o herdeiro são importantes, uma verdadeira lição que somente um pai pode dar: “Mantenha seus amigos e aqueles que você ama por perto”.
E a saga começa...
Após a cena, o jogador assume o papel do pobre garoto órfão que é jogado em um mundo desconhecido e com um objetivo: descobrir quem é o homem que tirou a vida de seu pai e trazer honra de volta à família. Resumindo, se vingar. Mas para isso é preciso colher informações, e tudo que sabemos inicialmente é que o homem dirigia um carro preto e parecia ser chinês.
Há uma verdade que precisa ser dita sobre Shenmue (DC): Este é um daqueles jogos que polarizam opiniões, acabam com famílias e destroem amizades. Ou você o ama, ou você o odeia. O meio termo é raro. Um dos grandes motivos é justamente a promessa de uma grande aventura com grandes mistérios e batalhas, mas que caminha de forma muito mais devagar do que muitos gostariam.
Os que amam e se entregam totalmente à obra-prima de Yu Suzuki e sua equipe na época, a AM-2, entendem a proposta da franquia de mostrar a jornada de crescimento pessoal do protagonista. Parte disso são as atividades mundanas. E neste primeiro capítulo, desta que prometeu ser a grande saga da SEGA, a ideia parece ter sido não só de apresentar personagens e mecânicas, mas criar as bases de tudo, uma identidade, um lugar para chamar de “casa”.
Você viu um carro preto? E marinheiros?
É preciso questionar muita gente até chegar a esses marinheiros. |
Porém, esses NPCs não são simples personagens adicionados só para fazer número, cada um deles vive uma vida dentro de Shenmue. Joãozinho-san acorda às 5 da manhã, escova os dentes, penteia o cabelo, veste-se, reza duas ave-marias, sai pra trabalhar, volta pra casa às 18h e assiste às reprises de Astro Boy na TV. Certo, o cuidado com os detalhes não chega a esse ponto, porém, a ideia de cada um ter uma rotina é real. E cada um deles pode ou não saber algo útil para a jornada, basta perguntar.
Isto traz também uma mecânica muito verossímil, que afeta qualquer pessoa que procura pelo assassino de um ente querido: é preciso observar a rotina dessas pessoas e esperar, às vezes muito tempo, para poder abordá-las nos momentos mais oportunos e tirar informações certas delas. E enquanto espera, que tal jogar um bom game? Isso é possível ao visitar as máquinas de fliperama do amado Game You, com os clássicos de Yu Suzuki, como Hang-On e Space Harrier.
A pergunta de 1 milhão de ienes: gastar dinheiro jogando ou comprando cápsulas? |
O sistema de batalha por sua vez, apelidado carinhosamente de “Free Battle”, é idêntico ao encontrado na série Virtua Fighter, e tira proveito de todas as vantagens do gênero de luta 3D, permitindo que o jogador ataque, defenda, esquive e contra ataque. Novas técnicas podem ser adquiridas de diferentes formas, entre elas ao treinar com personagens ligados à história ou simplesmente comprando-as.
Legado para o mundo dos games
Antes de GTA III (Multi) e outros títulos do gênero conhecido hoje como sandbox venderem milhões, havia Shenmue, que segundo seu criador não se encaixava bem em nenhum dos gêneros existentes. Para descrever o conceito por trás de sua obra para o mundo, Suzuki criou o termo FREE (Full Reactive Eyes Entertainmet), dado o nível de interatividade e liberdade nunca antes visto.Esse conceito de um mundo aberto era algo realmente inovador para a época, e até mesmo para os dias de hoje é impressionante. Em um relativamente pequeno espaço, é possível fazer uma variedade de ações. Em casa, por exemplo, você pode tirar seu SEGA Saturn de dentro da estante e jogá-lo (você precisa ganhar jogos na loteria), abrir a geladeira, rezar para a alma de seu pai e até mesmo abrir as gavetas de Ryo e descobrir sua coleção de revistas "sujas". Brincadeira, Ryo é um menino bom demais para isso.
Menos glamorosa é a mecânica de trabalho, que entra na parte das atividades mundanas do jogo. Mas o lado positivo é que ao trabalhar nas docas carregando caixas você não só ganha dinheiro e informações para ir atrás de seu inimigo mortal, mas também faz uma atividade importante: participa diariamente de uma corrida de empilhadeiras, que de acordo com o chefe serve para esquentar o corpo para o dia de trabalho. Ir de último colocado para o primeiro lugar no decorrer dos dias é uma verdadeira conquista.
Chegar às primeiras posições requer treino e conhecimento do percurso. |
De culpado por fracasso a clássico absoluto
Ao longo dos anos, o jogo que custou $70 milhões aos cofres da empresa passou de o grande vilão por trás do fim do Dreamcast a um título cult que conquistou e continua a conquistar uma legião de fãs fieis que idolatram tudo que o jogo representa. E apesar de a quantidade de conteúdo e a história intrigante serem motivos suficientes para qualquer um se apaixonar, o grande diferencial de Shenmue não está aí. É algo que chega a ser difícil de explicar, é uma sensação que ou você tem ou não tem, e para descobrir é preciso jogar.Desde os primeiros passos no lado de fora de casa, o mundo se mostra encantador e envolvente. A trilha sonora para a primeira exploração é inesquecível, e encaixa bem com a sensação de estar ali, em uma representação realista de um bairro japonês nos anos 80 (sim, o local é baseado em uma cidade real), após um evento traumático deixar o personagem perdido e anestesiado, procurando respostas.
Tudo isso é aliado ainda a uma dublagem historicamente ruim (a dublagem em jogos desse tipo ainda engatinhavam), porém, marcante a ponto de torná-la um dos seus grandes charmes, assim como a atuação em filmes antigos. Se isso não fosse o bastante, dá pra gastar muitas horas e ienes da mesada só comprando capsulas e bilhetes de loteria para completar a coleção de miniaturas de personagens da SEGA.
Seja para se divertir, explorar, conhecer mais um pouco sobre a cultura japonesa ou a história dos videogames, Shenmue é um clássico cheio de personalidade que merece ser jogado. Mais do que isso, é uma experiência sem igual, que faz valer a pena investir em um Dreamcast, ou o tempo gasto tirando ele do armário e soprando seu leitor óptico. Mas de preferência, sem nenhum QTE, por favor.
Revisão: Alberto Canen
Capa: Daniel Serezane