Um dos poucos consensos que costumo ver na Internet atualmente é a respeito da genialidade da equipe que produziu Portal (Multi). Também pudera: Portal é genial. A facilidade com a qual a dinâmica de pensar com portais é passada ao jogador como se fosse simples fazê-lo é objeto de inspiração e estudo para qualquer game designer e amante do ofício, em um patamar atingido apenas por alguns outros clássicos, como Super Mario Bros. (NES) e Mega Man X (SNES), por exemplo.
Muito já foi falado sobre como Portal ensina suas dinâmicas de jogo na introdução. O vídeo abaixo, do Extra Credits, é uma excelente síntese deste processo e eu recomendo a todos que assistam. Mas meu foco aqui não será a introdução do jogo, mas sim uma das favoritas dos fãs do jogo: a Testchamber 17, vulgarmente conhecida como a “fase do Companion Cube”.
Preparando-se para a fase
O Companion Cube é um objeto usado para abrir uma relação de afeto com Chell. O clima de solidão presente nas primeiras dezesseis câmaras encontraria, enfim, uma relação de afeto. Essa relação é construída na arte diferenciada do cubo, que possui um coração, nos estímulos da GLaDOS para tal e pelo próprio cenário da fase, conforme a figura a seguir mostra. Entretanto, ela é construída também pelo level design, não apenas da câmara, mas do jogo todo até este momento.Inicialmente, é importante que este estágio tenha sido o de número 17 (de 19). Nesta etapa, toda a relação de solidão dentro das câmaras de testes já foi reforçada pelo cenário vazio (nos quais, inclusive, não conseguimos ver pessoas nas mesas onde avaliadores deveriam estar presentes), na figura sinistra que é a GLaDOS e por diversos aspectos estéticos do jogo, como sua trilha sonora e as quebras de sonoridade, feitas por rádios presentes em todas as câmaras até então.
Testchamber 04: uma visão das salas vazias |
Em segundo lugar, é importante que a fase imediatamente anterior seja justamente aquela que ocupa a Testchamber 16. É a primeira aparição de entidades diferentes no jogo, os Turrets, seres nada simpáticos à sua presença. Além de introduzir um novo tipo de inimigo, reforçando a hostilidade do cenário, também é a fase que te ensina que os cubos não são meramente itens para fazer peso em botões: eles também são armas de ataque e defesa (vídeo abaixo). Há muito mais o que falar desta fase, mas para o objetivo deste texto, o necessário é isso.
Finalmente na Testchamber 17
Começando a fase propriamente dita, a primeira coisa que dá pra notar é que nenhuma das paredes ao nosso alcance pode receber portais. Logo após uma contagem regressiva, recebemos o Companion Cube. Note que, enquanto esperamos o objeto cair, um botão está ao nosso alcance visual. A meta é clara: levar o cubo ao botão. Desce então um cubo com um coração desenhado. Esta estética reforçadora da unicidade do item estará em nossa linha de visão por um bom tempo porque, conforme veremos a seguir, precisamos nos deslocar com ele ao longo da câmara.
Note, ainda na visão anterior, que nada nos impede de ignorar o cubo e passar pela porta, ao contrário de outros contadores. Até chegarmos ao primeiro obstáculo: plataformas que, apenas com o nosso pulo, não somos capazes de subir. Neste momento o jogo te ensina: o cubo te auxiliará na ultrapassagem dos obstáculos. Mesmo que a primeira parede que aceita portais finalmente esteja ao alcance da Portal Gun, ela é inútil neste momento, por não haver outra ao seu alcance.
Após subir o obstáculo, a fase segue com um caminho para um corredor sem espaço de desvio para os lados. Como há um tiro vindo em sua direção (algo avisado pela parede marcada), há duas opções de ultrapassar: correr demais (não funciona) ou usar o cubo como defesa, algo talvez aprendido na Testchamber 16. Aqui o jogo te ensina mais duas coisas: o cubo te protegerá de ataques e é capaz de refletir os tiros. Há um segundo corredor com a mesma lógica, mas agora caminhamos no mesmo sentido do tiro, um desafio um pouco mais difícil que o primeiro corredor. Para evitar acidentes no aprendizado, a porta do primeiro corredor fica no extremo dele, para garantir que o caminho com o qual o tiro venha ao nosso encontro seja o mesmo.
Passamos pelo segundo corredor e damos de cara com o primeiro puzzle (vide imagem). Este puzzle já apareceu em outras oportunidades e está bem claro para relembrar para o jogador o que ele deve fazer na fase. Ao descermos, damos de cara com outros dois puzzles com o mesmo objetivo, levar o tiro ao seu destino. Todavia, estes dois contam com uma característica: você precisa do cubo para resolvê-los, usando as duas características aprendidas na fase: reflexão e posicionamento no botão.
O afeto criado
Após passarmos, as plataformas sobem e somos capazes de chegar no botão que vimos lá no começo da fase. Esta porta fechada necessita do Companion Cube para ser aberto. E então finalmente chegamos ao triste destino do objeto, em narração feita pela GLaDOS: precisamos sacrificar o cubo para seguirmos em frente. Neste momento, alguns jogadores, com laços construidos pelo item, tendem a hesitar, mas o destino é inevitável.Não deu, galera |
Note que a narrativa e a estética do jogo contribuíram para que este afeto fosse criado, claro. Mas sem o incrível level design da Testchamber 17, teríamos um sentimento muito mais artificial. Nós vivemos aventuras com o Companion Cube; sem ele não seguiríamos na fase, mas graças a ele e seu sacrifício involuntário, é que somos capazes de prosseguir no jogo. A Testchamber 18, gigante e vazia, aém do diálogo com GLaDOS lembrando do objetivo de comer o bolo, ajudam-nos a seguir em frente com foco, mas sem esquecer nossa única companhia nesta aventura.
Portal é uma aventura completa, única e incrível por causa destas características. Absolutamente tudo se encaixa, é o único jogo que eu qualifico como uma experiência perfeita de videogames. Mesmo tendo amado seu sucessor, seu tamanho e a expectativa por ele não permitiriam um produto tão bem definido e bem resolvido. Jogar Portal ensina tanto sobre game design que deveria ser obrigatório para qualquer pessoa disposta a entender melhor o que é esse tal de videogame.
Revisão: Vitor Tibério
Capa: Felipe Araujo