Rogue (PC) e o nascimento de um gênero

Poucos jogos foram mais influentes do que Rogue, que deu nome a todo um gênero.

em 16/05/2015
Tudo começou em 1980, em uma universidade no interior dos Estados Unidos. Dois jovens programadores, Michael Toy e Glenn Wichman, estavam empenhados em fazer um programa que gastasse mais tempo de processamento que qualquer coisa já feita antes. Eles fizeram isso da única forma que sabiam: com fantasia, masmorras labirínticas e uma variedade de monstros inspirados em Dungeons & Dragons obcecados em matar o solitário herói que adentrasse àquele mundo em busca do mítico Amuleto de Yendor.


O nome daquela aventura? Rogue. Nascia assim não apenas um jogo, mas todo um gênero — os chamados roguelikes.

Roguelikes vs Dungeon Crawlers

Mas o que Rogue fez de tão marcante para que um gênero fosse nomeado em sua homenagem? Afinal, outros jogos criados em terminais como dnd, Akalabeth: World of Doom, Moria e Eamon já haviam lançado as sementes do que ficariam conhecidos como RPGs hoje em dia. Em retrospecto, a interface não-gráfica e sistema de combate simplificado do jogo chegam a parecer um retrocesso.
Em sentido horário: dnd, Akalabeth,
Eamon e Moria, alguns dos progenitores dos RPGs
Há, entretanto, várias importantes diferenças entre os clássicos Dungeon Crawls e Rogue e seus descendentes. Elas podem ser resumidas em basicamente três: a geração aleatória de conteúdo, a dificuldade e a morte permanente (permadeath, para os íntimos). Tais elementos provavelmente já apareceram em jogos anteriores, mas Rogue foi o primeiro a uni-los de forma indissociável em sua jogabilidade.
Precursor desconhecido
Teoricamente, Beneath Apple Manor seria o primeiro roguelike da história, sendo lançado para o antigo Apple II em 1978, dois anos antes de Rogue. Entretanto, o jogo teve pouca repercussão e os criadores de Rogue fizeram sua obra de forma independente, sem conhecimento do antecessor — e tiveram muito mais sucesso e influência no processo. Imaginem só: se os eventos tivessem ocorrido de forma um pouco diferente, não teríamos roguelikes, e sim apple-manorlikes.
A aleatoriedade de Rogue manifestava-se de duas formas: na geração dos níveis e dos itens. Cada gameplay era intrinsecamente diferente. Quantas salas terá esse andar? Que itens encontrarei? Qual será o efeito da poção vermelha desta vez, benéfico ou nocivo? Que monstros (e quantos) enfrentarei? Todas essas perguntas precisavam ser refeitas a cada nova partida. Cada novo jogo era inédito, imprevisível.

Tal imprevisibilidade tornava o título extremamente difícil. Claro, às vezes os deuses estavam ao seu lado e você encontrava uma sala cheia de poções e pergaminhos — apenas para no próximo andar da masmorra ser encurralado por vários monstros num labirinto aparentemente sem saída. Sacrificar um D20 para o RNG (Random Number God) era quase que uma obrigatoriedade para ser bem-sucedido.

Somando-se a isso o fato de a morte ser permanente (uma vez morto, o jogador precisava recomeçar do início, sem nenhum de seus itens, poções ou pergaminhos), Rogue tornava-se principalmente uma experiência de morte e descoberta. Você morrerá várias e várias vezes até que finalmente alcance o mítico Amuleto de Yendor, com cada tentativa sendo uma nova experiência.
Weeeeee!
Este é o tripé que sustenta todos os roguelikes. Se qualquer uma destas características estivesse faltante, Rogue seria facilmente esquecido pela história, assim como tantos outros CRPGs primitivos produzidos naquela época. Mas, graças a esse conjunto inusitado de mecânicas, mesmo com seus mais de 25 anos nas costas, ele é jogado até hoje e possui milhares de descendentes.

Filhos que dão orgulho ao pai

Os primeiros descendentes de Rogue não mexeram muito com a fórmula estabelecida pelo clássico. Não deixavam de ser únicos e excelentes, mas é possível encontrar neles elementos muitas vezes ausentes nos roguelikes modernos: interface em ASCII, história que serve como mero pano de fundo, combate em turnos.

As semelhanças com o pai do gênero vão muito além da estética e mecânicas de combate, entretanto. Estes descendentes mais próximos ainda têm o mesmo espírito de game design. São jogos baseados no controle da aleatoriedade, sendo necessário entender intimamente como funcionam os sistemas daquele mundo para dobrar a sorte ao seu favor. O RNG está em todos os cantos pixelados daqueles mundos cruéis.

Ainda assim, cada um deles colaborou com novas ideias e novidades que os imortalizaram nos anais da história dos jogos. Assim como seu “pai”, muitos são jogados e adorados até hoje.

NetHack (PC)

Provavelmente o mais clássico, famoso, bem feito e jogado roguelike da história. Criado em 1987, pega a fórmula de Rogue e adiciona profundidade e complexidade difícil de encontrar mesmo hoje em dia. Há uma enorme variedade de raças, alinhamentos, divindades, armas, maldições, bençãos e formas de interagir com o mundo. Tendo sido desenvolvido continuamente por 28 anos, é possível jogar NetHack durante meses sem ver sequer metade do que ele pode oferecer. Obrigatório para os fãs do gênero e completamente livre e gratuito para se baixar.

Angband (PC)

Baseado nos mitos de J. R. R. Tolkien, o objetivo do jogo é explorar os 100 andares da fortaleza de Morgoth e conseguir poder o suficiente para derrotá-lo. Menos conhecido que NetHack mas com uma base de fãs tão obcecada quanto, a versão mais recente do jogo foi lançada em 24 de dezembro de 2013 e pode ser adquirida aqui.

Ancient Domains of Mystery (PC)

Diferentemente dos primeiros roguelikes, a história de ADOM não é mero pano de fundo. As relações com os NPCs também não são binárias, como em NetHack: há um sistema de alinhamento, influenciado por suas ações, que interfere em sua relação com outros personagens e, inclusive, com os finais disponíveis.


Em desenvolvimento contínuo desde 1994, o projeto foi recentemente financiado pelo Indiegogo, ganhando nova interface gráfica e mais conteúdo. Agora, será lançado no Steam, após a bem-sucedida campanha no Greenlight. Versões anteriores do título ainda podem ser baixadas gratuitamente direto do site oficial.

Netos criativos e divertidos

Os “netos” de Rogue costumam brincar mais com a fórmula do gênero. A interface em ASCII dá lugar a gráficos "de verdade"; o combate em turno é substituído por batalhas em tempo real; a visão top-down dá espaço para visões side-scrolling ou até mesmo em primeira pessoa. Não obstante, as três características essenciais (aleatoriedade, dificuldade e permadeath) continuam firmes e fortes.

Um novo termo também foi criado para classificar muitos desses jogos: “rogue-lite”. Termo enganoso: muitos desses games são mais acessíveis, mas continuam sendo experiências imperdoáveis e de arrancar os cabelos.

The Binding of Isaac (PC)

A arte "fofinha" à primeira vista engana. Pegando inspiração na mitologia bíblico-cristã e ambientado num cenário lovecraftiano, The Binding of Isaac é uma história de horror do início ao fim. Usando suas próprias lágrimas como armas, Isaac precisa chegar  até o último andar de seu porão para enfrentar sua própria mãe — que, em um devaneio religioso, quer sacrificar seu filho em nome de Deus.

Inserindo a ideia de gameplays progressivas, cada partida libera novos itens e poderes. Adição mais do que bem vinda, visto que combate imperdoável e difícil significa que o jogador morrerá e recomeçará o jogo muitas e muitas vezes.

Um remake, intitulado The Binding of Isaac: Rebirth (Multi), foi lançado em 2014, com novos gráficos, finais inéditos e o dobro de conteúdo. Para os masoquistas de plantão, ele ainda conta com um novo modo de dificuldade. Boa sorte!

Rogue Legacy (Multi)

Rogue Legacy é o filho perdido de Rogue e Castlevania (NES). Usando a mesma ideia de Binding of Isaac em que cada partida libera novos itens e poderes, o jogo orgulhosamente se propagandeia como um "rogue-LITE". É provavelmente uma das obras mais acessíveis do gênero, com muito mais foco em anular a aleatoriedade através de partidas progressivas. Ainda assim, um ótimo e popular exemplo moderno.

Dungeons of Dredmor (PC)

Dredmor não consegue se decidir se quer ser "roguelike" ou "rogue-lite". Por um lado, é mais fiel aos clássicos que seus irmãos modernos: visão top-down, combate em turnos, gerenciamento de equipamentos bem complexo… Por outro, tenta agradar uma gama maior de jogadores, adicionando opções para diminuir a dificuldade e até mesmo desativar a morte permanente (heresia!).

Mas, como dito, isso são apenas opções — opções estas que os jogadores de velha guarda prontamente ignorarão.

Tales of Maj'Eyal (PC)

Um roguelike tradicional para a era moderna. Muitas classes, mundo rico e com boa história, além de construção de personagens super profunda e complexa. Tales of Maj'Eyal é basicamente o jogo que Michael Toy e Glenn Wichman teriam feito se tivessem nascido no século 21.

Pode ser baixado de graça no site oficial, mas também há uma versão para Steam com conquistas, cartas e suporte integrado para mods.

Uma descendência longa e próspera

Após anos sendo um gênero de nicho, os roguelikes ganharam o gosto dos indies e do público. Além da infinidade de excelentes jogos não citados (UnReal World, Doom, the Roguelike, FTL: Faster Than Light, 99 Levels To Hell, Don't Starve, Tower of Guns, Risk of Rain, Sword of the Stars: The Pit… Posso ficar o dia todo aqui), há muitos outros por vir nos anos à frente.

Este interesse no gênero também garante que muita experimentação seja feita. Alguns roguelikes, como Crypt of the NecroDancer (PC), têm propostas totalmente inovadoras e lembram cada vez menos Rogue — o que é bom e mostra como o gênero está crescendo.

Entrar nesse mundo é fácil. Sair, por outro lado, é uma aventura tão difícil quanto conseguir o Amuleto de Yendor no Rogue original.

Revisão: Luigi Santana
Capa: Victor Pereira

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