Como a indústria e os jogadores estão tratando a história dos videogames

Com mais de 40 anos de vida os videogames já têm muita história. Mas como estamos tratando ela?

em 11/03/2015
Nunca havia jogado nenhum jogo da série Metroid até o momento em que, ainda essa semana, resolvi começar Super Metroid a partir do Virtual Console do Wii U. Enquanto eu jogava, meu cunhado que estava em casa e joga videogames desde a era do PlayStation 2 (é dez anos mais novo que eu) olhou para a tela e perguntou: “por que você está jogando isso?”. Eu inquiri o porquê do espanto, ele sabe que eu jogo não só títulos AAA, como muitos indies, e que adoro sessões retrôs de games que eu já tenha jogado ou não. Ao que ele respondeu: “o gráfico é muito feio, e jogos assim em visão lateral são muito chatos”. Ele nasceu enquanto jogador na era do 3D, e isso fica claro a partir das impressões dele. Não deixa de ser preocupante, porém.  Há alguma semanas, Felipe Pepe, um brasileiro que está escrevendo um livro sobre RPGs para computadores e sua história, levantou uma discussão importante no site Gamasutra: qual o perigo de deixar a própria indústria ser a curadora da história dos jogos eletrônicos e, de modo geral, como estamos lidando com ela? A reflexão de Felipe começa da seguinte maneira:

Recentemente fui convidado a ministrar uma pequena aula sobe a história dos RPGs para computadores para uma sala com cerca de 30 estudantes de game design. Eu comecei perguntando quantos deles haviam jogado Skyrim. Todos levantaram as mãos. Depois eu perguntei quantos deles se consideravam fãs hardcore da série Elder Scrolls. Cerca de 60% mantiveram suas mãos erguidas. A próxima questão: quantos de vocês jogaram Oblivion? Agora apenas 20% mantinham suas mãos no alto. E somente duas permaneceram lá quando perguntei sobre Morrowind, e nenhuma quando inquiri sobre Daggerfall e Arena. Aquela não era uma audiência casual. São estudantes de uma escola de game design, pessoas que decidiram apostar seu futuro nos videogames.

Buscando a História dos videogames

Mas o que é recontar a história de uma mídia e qual a relevância disso? Pode ser difícil de acreditar, mas é algo importante tanto para os jogos em si, quanto para a sociedade como um todo. A importância no que diz respeito à própria industria é mais nítida. A forma como revisitamos os jogos e consoles antigos, assim como pesquisamos sobre o passado dos games, é essencial para a definição do presente e do futuro. Muitos futuros desenvolvedores de jogos estão sendo formados com a ideia de que muitos títulos são ultrapassados, e que suas opções de design, narrativa, etc., bem como o contexto técnico de suas criações, não têm nada de relevante a ensinar, uma ideia compartilhada por grande parte dos jogadores. Mas quem está formando esses desenvolvedores e o publico em geral? Chegaremos lá.
Com mais de 20 anos de atraso eu finalmente posso dizer: que jogo, amigos, que jogo!
Entender a relevância da história dos videogames em um contexto geral é mais difícil. Um jogo é um produto desenvolvido por diversos profissionais, mediante um contexto definido, no qual as suas subjetividades dialogam com o próprio contexto para criar uma obra de entretenimento. Por mais fantasioso que um jogo possa ser, ele é, sempre, resultado das histórias de vida, personalidades, impressões, crenças e posicionamentos dos envolvidos em constante diálogo com a sociedade que os cerca.

Peguemos como exemplo o jogo Final Fantasy VII. Existe uma maneira pela qual a questão racial é tratada, a partir do personagem Barret. Há, também, demarcações de gênero e uma forma de construir personagens masculinos e femininos. Tem discussões sobre modificação de soldados, o papel de corporações nas decisões da sociedade, e até uma reflexão sobre meio ambiente e a utilização de recursos naturais, para citar algumas. Analisar e debater a forma como o jogo trata de tais assuntos, assim como a recepção de publico, crítica, e todos os meandros da própria produção do título, abre boas possibilidades para pensarmos sobre nosso mundo.
As discussões, referências e debates são mais claros em Xenogears, por exemplo, mas todo título traz impressões sobre nosso próprio mundo.

Lugar de coisa velha é no museu?

E esta história está mesmo em perigo? Acredito que sim, vejamos dois exemplos do descaso que indústria, mídia e gamers têm com a sua própria história: a morte de Ralph Baer e o Game Developers Choice Awards de 2015. Mesmo eu, que me preocupo cada vez mais com a história dos jogos, não sabia quem era Ralph Baer, e nunca li nada sobre ele na mídia especializada. Foi preciso que ele morresse para que se tornasse pauta e reconhecido como o “pai dos videogames”. Se é assim que a gente trata um pai, imagina o resto?

Acompanhei, via Twitch, a cerimônia de premiação do Game Developers Choice Awards de 2015, e fiquei horrorizado com os comentários. Não vou nem entrar a fundo no problema da violência e desrespeito nos comentários (inclusive racistas), o que causou mais espanto foi a falta de noção em relação aos games. Tim Schaffer estava apresentando e diversas pessoas falavam coisas do tipo “quem é esse cara?”, “tira ele dai”, “de onde tiraram esse cara?”. Aparentemente estar envolvido em inúmeros adventures geniais ao longo dos anos não serve pra nada. Entregaram um prêmio para Brenda Romero, desenvolvedora de Wizardry, e, além de mais uma enxurrada de comentários sobre ela não ser ninguém importante, a preocupação dos comentaristas com aquela mulher era o fato dela ter seios.
De onde tiraram essa cara? Quem é ele para falar de jogos?
Hironobu Sakaguchi, criador de Final Fantasy e atual diretor da Mistwalker (Lost Odyssey, The Last Story, Terra Battle), recebeu um prêmio pelo conjunto da obra e por sua carreira. Um vídeo muito bem-humorado do Mega64 em que Sakaguchi participou contava a história do desenvolvimento dos vários jogos da franquia Final Fantasy. O comentário da galera? “Quem é esse, Kojima?”, “tira esse japonês daí”, “aprende a falar inglês”, etc. A gente, infelizmente, sempre espera comentários maldosos e trolls na internet, mas o que impacta é o fato de serem pessoas que resolveram gastar um tempo das suas vidas para ver uma premiação de games (que nem é a mais popular) e demonstrarem ou pouquíssimo conhecimento ou pouquíssimo respeito por aquelas figuras, quando não os dois.
Outras formas de se conectar ao passado
Além do livro que o Felipe está escrevendo, e que pode ser baixado em formato prévio no site oficial, existem outras boas iniciativas. Cada vez mais temos museus, ou alas, dedicados aos jogos eletrônicos, chegando até ao MoMa, um dos mais importantes museus de arte contemporânea do mundo, situado em Nova Iorque. Pela internet, alguns documentários procuram contar a história dos games, ou partes dela. O mais fácil de encontrar é o Video Games: The Movie, disponível no Netflix. No YouTube existem canais, como o Gaming Historian, focados no assunto. Outra dica imperdível é a publicação brasileira Old!Gamer, que além de ter um conteúdo muito bom traz um design impecável. Para quem quer jogar, tem o Virtual Console da Nintendo, o Steam, e a promessa do PlayStation Now. Além destes, o internet archive possui um acervo de mais de 2500 jogos emulados em browser. Vale a pena conferir. Falando em emulação, que é um assunto delicado, ela acaba sendo um dos canais mais utilizados para reviver essa história. No mais, tente reler aquela Nintendo World antiga, ou qualquer outra revista que tenha em casa, com certeza será algo recompensador!

O novo é sempre melhor!

De onde vem tanto descaso com a história de nossa mídia tão querida? Felipe Pepe responde: dela própria.
Vamos ser honestos — a indústria dos games é movida pelo hype. Cada novo lançamento é a melhor coisa de todos os tempos e vai transformar sua vida. Nenhum segredo aqui, dá para perceber a mesma coisa em filmes, livros e música — ninguém publica algo dizendo “está aqui o novo X, não é tão bom quanto o anterior mas compra aí”. Todavia, a indústria dos jogos possui uma característica só sua: é a única que ataca os lançamentos anteriores para fazer o novo parecer melhor.
2008: Trazendo uma atmosfera mais realista e uma narrativa densa e complexa, GTA IV dá um salto importante para a série. 2013: Deixando de lado a seriedade, GTA V se foca no conteúdo e na diversão, que sempre foram o foco da série.
Não sei se é a única, mas o apontamento é interessante. É o papel da empresa vender a novidade, e isso acaba sendo, muitas vezes, reproduzido pela mídia e jogadores. Se por um lado, muitos críticos e reviewers só descobrem as “falhas” de um jogo às vésperas do lançamento de sua sequência, por outro, muitos jogadores querem sempre a nova experiência que vai além da anterior, nem que ir além seja apenas ter gráficos melhores. Outro dia estava conversando com um amigo meu sobre o Final Fantasy XV, de como ele parece estar muito bom e tudo mais. Ele, que jogou todos os jogos lançados a partir do Final Fantasy VII, estava muito empolgado, principalmente com a narrativa e a ambientação, e comentou o quão chato era ter de esperar pelo lançamento. “Joga Final Fantasy VI, dá para descolar ele em inúmeras plataformas hoje em dia”, aconselhei. Ele não achou uma boa ideia.
Mesmo com as limitações do hardware, Final Fantasy VI traz uma das cenas mais geniais da história da franquia. Confluindo narrativa, batalha, exploração, música e visuais para formar um incrível (e ambicioso) momento dos videogames.
Voltando ao exemplo do Elder Scrolls, imagino quantas pessoas não aguardam por um novo jogo da série, principalmente após o sucesso de Skyrim. Será que não vale a pena jogar os títulos anteriores? Oblivion é um ótimo game, similar ao quinto da série, e Morrowind é um jogo ainda mais imersivo, inteligente e instigante que seus sucessores. Além destes, Arena e Daggerfall, que eu mesmo nunca joguei, estão disponibilzados de graça no site da Bethesda. É algo para se pensar.
Felipe Pepe dá um exemplo emblemático. Depois do anúncio do reboot de King's Quest, várias notícias sobre o jogo e sua criadora Roberta Willians apareceram. Antes de tal momento, muito pouco se falava sobre esse importante título e seus criadores.
A indústria dos jogos eletrônicos, sua mídia e consumidores justificam remakes e reboots com o argumento de que os jogos devem ser atualizados para uma nova geração. Vamos ser honestos, qualquer publisher vai lançar qualquer coisa que possibilite geração de valor, lucro. Não fazem isso porque são malvadas corporações (algumas até são), apenas porque o modelo de relançamentos é relativamente seguro e lucrativo (assim como outras práticas como as famigeradas DLCs) e é assim que as coisas andam. Em um mercado em que produzir títulos AAA está cada vez mais caro, monetizar o passado é importante. Quem sabe as vendas do The Last of Us: Remastered não se convertam em um Uncharted 4 mais polido e incrível ainda? Entratanto, capitalizar a história, do ponto de vista da nossa discussão, pode ser algo negativo.
Majora's Mask 3D, além de possibilitar um novo momento para recordar o título original, ainda traz algumas melhorias na jogabilidade. E também serve como fonte de dinheiro para a Nintendo arrebentar nos próximos jogos. Como isso pode ser ruim? 

Olhar o passado é refletir o presente e construir o futuro

Por que adoramos remakes? Por que não jogamos o título original? Alguém aí pode dizer “poxa, Pedro, já zerei Chrono Trigger milhões de vezes, gostaria de revisitar o título a partir de uma nova perspectiva”, e não vai estar sendo injusto, muito menos equivocado. Mas qual o motivo de tal experiência não bastar? Será que estamos sendo insensíveis com a vasta história dos jogos? E o que acontece com os inúmeros títulos sem remake, ou mesmo sem sequência? E com os profissionais, consoles e séries cada vez mais esquecidos e tratados como ultrapassados?

Esta matéria, pautada no texto original de Felipe Pepe, possui a intenção de trazer este importante debate e convidar à reflexão. Afinal, inúmeros profissionais, consoles, empresas e jogos fizeram parte desta incrível história, uma que deve ser revisitada, pesquisada e analisada, para que possamos ter um futuro ainda mais interessante, tanto nos jogos quanto na vida.


Revisão: Vitor Tibério
Capa: Victor Pereira

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