Como a história dos jogos de PC é preservada

Os esforços da indústria e dos fãs para que os jogos do passado não fiquem no passado.

em 29/03/2015
Há uma certa preocupação no modo como indústria e jogadores têm tratado a história dos games. Por um lado, o interesse em comercializar e comprar clássicos é presente, como pode ser bem visto na existência do Virtual Console nas plataformas da Nintendo e os vários lançamentos de PS e PS2 na PSN. Por outro lado, há um enorme receio com o modo como gamers novos (principalmente por parte dos jogadores de “velha guarda”) encaram títulos antigos, frequentemente se recusando a jogar algo por causa dos gráficos rudimentares ou perspectiva 2D.
Nunca estive tão próximo de cometer um assassinato como no dia em que meu irmão caçula disse que The Secret of Monkey Island era "feio".
Mas, sendo eu um jogador de PC de longa data, o cenário me parece bem menos catastrófico do que aquele que vejo nos consoles. Claro, também há jogadores de PC com comportamento infantil e que julgam o valor de um game exclusivamente pela idade ou avanço gráfico. Mas, paralelamente, há bastantes casos de valorização e celebração de clássicos do passado — tanto pelo mercado quanto pelos fãs. Inclusive, graças às peculiaridades da plataforma, nos computadores é possível ver jogadores agindo de forma independente e ativa para preservar sua história.

Com grande retrocompatibilidade vêm grandes oportunidades

Retrocompatibilidade é uma característica desejada e elogiada num novo console. Contraditoriamente, também é uma das qualidades mais incomuns. Vários videogames antigos não possuíam qualquer forma de compatibilidade com jogos da geração anterior — NES, Super Nintendo, Nintendo 64 e GameCube simplesmente não se comunicavam entre si — e, dos aparelhos modernos, apenas o Wii U roda jogos de seu antecessor.
Quem dera.
Tal fato é compreensível de um ponto de vista técnico. Uma nova geração de consoles, na maioria dos casos, implica numa nova arquitetura. Tornar as novas máquinas retrocompatíveis seria um desafio de engenharia e acarretaria em preços maiores. Sacrifícios precisam ser feitos.

As consequências desse sacrifício, entretanto, são problemáticas. Retrogamers são obrigados a ter uma gigantesca coleção de aparelhos e emaranhado de cabos caso queiram preservar seu acesso a jogos antigos. Já jogadores novos que estejam tentando conhecer algumas pérolas do passado possuem apenas duas opções: depender da boa vontade das empresas em relançá-las para os consoles atuais ou gastar uma pequena fortuna no eBay e sites similares.
Mas pensando bem, existe maneira melhor de chegar à falência?
Nos PCs, tais problemas são menos prevalentes. Por volta dos anos 1990, a arquitetura dos computadores foi unificada no padrão IBM PC. Um jogo lançado nos últimos 10 ou 15 anos possui grandes chances de rodar em máquinas modernas sem grandes problemas — enquanto nos consoles, na maioria das vezes, máquinas de nova geração são simplesmente incapazes de rodar títulos da geração anterior. Em certos casos é necessário aplicar alguns patches ou mexer em configurações de compatibilidade do sistema, mas ainda assim é um cenário infinitamente melhor.

A disponibilidade comercial de jogos antigos também é significativamente maior e abrangente nos computadores. Enquanto a Nintendo parecer ser alérgica a dinheiro, com um Virtual Console tímido e pequeno (a situação nos outros consoles não é particularmente melhor), um PC gamer novo tem a sua disposição alguns milhares de clássicos que podem ser comprados digitalmente nas principais lojas online. Há até mesmo lojas especializadas em games do tipo, como a GOG.com, que tem uma extensa biblioteca de relíquias e as vende com correções e patches de compatibilidade pré-aplicados.

E que tal alguns clássicos de forma gratuita e legal? Várias desenvolvedoras disponibilizam seus primeiros jogos sem preço algum, como é o caso de The Elder Scrolls: Arena e The Elder Scrolls II: Daggerfall, da Bethesda, ou The Lost Vikings e Rock N' Roll Racing, da Blizzard. Já projetos como o Internet Archive permitem que qualquer computador com acesso à internet e um navegador moderno rode clássicos do MS-DOS sem pagar nada por isso. Enquanto isso, o último clássico oferecido gratuitamente pela Nintendo foi… Hum… Bem… Deixa pra lá.

Fãs curadores

Infelizmente, mesmo havendo uma enorme seleção de clássicos à disposição dos jogadores de PC, algumas gemas acabam sendo perdidas. As empresas parecem não ter interesse em revender digitalmente algumas de suas obras antigas, ou há brigas legais em torno da marca de um game, o que impossibilita sua comercialização.
Devido a complicações legais, No One Lives Forever é um dos grandes clássicos de PC indisponíveis para compra.
Esses games podem até ter sido esquecidos e jogados no limbo legal pela indústria, mas não pelos fãs. Vários sites e organizações se empenham em colecionar essas relíquias abandonadas: são os chamados abandonware.

Entramos aqui numa área “cinzenta”. A legalidade desses sites é controversa, para dizer o mínimo. Mas a maioria dos projetos do tipo age na boa-fé. O interesse de seus organizadores é puramente preservar os jogos antigos, com muitos deles retirando os títulos que voltaram a ser comercializados de alguma forma ou sob o pedido dos desenvolvedores.
Não existem clássicos perdidos nos PCs.
Na mesma veia, existe uma série de projetos voltados à reconstrução de arquiteturas de PC obsoletas. Antes do IBM PC virar padrão, havia uma infinidade de arquiteturas rivais: Amiga, ZX Spectrum e MSX, dentre outras. Esses computadores já foram bem populares e tiveram uma miríade de jogos desenvolvidos para eles, acessíveis hoje em dia apenas graças aos esforços de programadores dedicados e obstinados. Até mesmo mainframes anciãs, como a PLATO, na qual se desenvolveu uma peculiar cultura hacker, foram reconstruídas, preservando assim os primeiros RPGs e shooters da história, como dnd e Empire.
Atenção! O artigo não está abordando a emulação como ferramenta de pirataria! Estou falando aqui do uso de programas para rodar software de arquiteturas antigas ou obsoletas em máquinas modernas. Tais programas são, inclusive, usados de forma completamente legal e comercial em alguns casos, como ocorre com vários jogos antigos distribuídos pelo GOG.com.

Fãs curandeiros

Alguns fãs fazem mais do que apenas preservar os jogos, tomando para si a missão de dar assistência técnica e suporte a games antigos, criando patches e disponibilizando updates. Em casos extremos, chegam a reconstruir o jogo do zero. Civilization, X-COM: UFO Defense, Doom e Quake são apenas alguns dos vários games em que programadores independentes mergulharam no código fonte e fizeram engenharia reversa até reproduzirem os jogos de forma idêntica, mas sem problemas de compatibilidade e bugs que os assombravam.

De modo similar, o multiplayer de muitos títulos é suportado quase que inteiramente pelos fãs, que criam servidores privados para manter os jogos ativos anos depois de as empresas encerrarem o suporte oficial. Quando vários games perderam suas funcionalidades online devido ao fechando do serviço GameSpy, gamers se uniram para consertar o problema, permitindo que clássicos antigos adorados por seu multiplayer online, como Balttefield 1942, continuassem acessíveis para jogadores novos e antigos.
"Now powered by gamers."
É também graças ao empenho de fãs que alguns MMOs ganharam sobrevida mesmo após o fechamento dos servidores oficiais — uma série de servidores privados de Star Wars Galaxies surgiram após o seu fechamento em 2011. Como um exemplo extremo, temos o caso dos MUDs (Multi-user dungeons): os avôs dos MMOs criados em 1980, antes mesmo da web existir, continuam a ser jogados até hoje.

Muito mais do que museus interativos

Mais do que preservar ou reconstruir, muitos fãs usam jogos antigos como ferramentas para se expressar criativamente — e até mesmo criarem novos jogos. Vários jogos de PC lançados anos atrás ainda têm força ativa no presente graças a uma particularidade da plataforma: os mods.
Mods!
Mods mais “simples”, que se limitam a fazer atualizações gráficas, estéticas e de interface, conseguem tornar grandes clássicos bem mais agradáveis aos olhos de jogadores novos e antigos. Já outros, mais ousados, são basicamente expansões do jogo original e criam novas formas de se interagir com eles — algumas conversões totais chegaram até a virar jogos completos.

Um caso emblemático é o do jogo Eamon. Lançado em 1980, ele vem recebendo novas aventuras e histórias há 35 anos graças a sua comunidade fiel e dedicada. Uma prova de que jogos antigos não precisam ser apenas peças de museu que você pode brincar de vez em quando. Só porque são antigos, não quer dizer que estão mortos ou fossilizados.

PC Exclusive?

Nem todos os casos descritos aqui se aplicam exclusivamente aos PCs. Principalmente na cena hacker, há um grande esforço por parte de fãs para preservar jogos antigos de console, com grupos de tradução e correções de bugs espalhados pela internet. Mas os consoles são uma plataforma fechada e controlada, fazendo com que as ações de tais grupos constantemente recaiam na ilegalidade.

Computadores, devido a sua natureza aberta e flexível, permitem que tanto a indústria quanto os fãs tenham voz mais ativa na preservação de sua história lúdica. Todos ganham com isso.



Revisão: Luigi Santana
Capa: Felipe Araújo

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