Mas em um mundo no qual pais passam cada vez menos tempo com os filhos, guerras emendam-se umas nas outras, catástrofes são vistas como eventos incríveis e a violência generalizada faz parte do “espetáculo” de cada dia, seria correto dar todo o crédito da violência (ou mesmo uma parte dele) para os jogos eletrônicos? E esses jogos, são adequados ou não para crianças e adolescentes?
Tudo começou há 15 anos…
Desde o polêmico lançamento do jogo Doom (PC), em 1993, surgiu um debate que chega até 2014 e, aparentemente, insiste em não se encerrar. O caso é que, para a época, Doom foi considerado um jogo brutal e de uma violência visceral. Mesmo com sua censura proibindo-o para menores de 18 anos, em alguns países ele foi banido totalmente das prateleiras. E aí, em 20 de abril de 1999, aconteceu uma tragédia que serviu de “comprovação” para todas as mirabolantes teorias de que videogames incitam a violência nos jovens: o Massacre de Columbine.Nesse controverso episódio, dois jovens planejaram e efetuaram um massacre no colégio de Columbine de Denver, no Colorado, EUA, onde eles mataram 13 jovens e cometeram suicídio. Ao investigar a vida dos dois rapazes logo foi feita uma assossiação de seus crimes com dois jogos que ambos jogavam frequentemente: o já citado Doom e Wolfenstein 3D (PC), o primeiro jogo de tiro em primeira pessoa (FPS) da história. Anos se passaram com toneladas de mitos sobre a história, um deles de que a atrocidade foi cometida por causa do excesso de tempo que os rapazes passavam jogando.
O psicólogo norte-americano Peter Langman, autor do livro “Why Kids Kill: Inside the Minds of School Shooters”, estudou o caso profundamente e recentemente afirmou que os garotos não eram simplesmente meninos que jogaram videogame demais; nem muito menos garotos comuns que apenas queriam ser famosos. Segundo o psicólogo, eles não eram garotos comuns, mas sim pessoas dotadas de uma estrutura de personalidade raríssima: a perversão, que também é chamada de psicopatia.
O problema é que essa afirmação demorou tempo demais para chegar às grandes mídias e outros eventos começaram a ser “misticamente” relacionados aos jogos de videogame. Um deles foi o ataque ao Aeroporto Internacional Domodedovo na Rússia, em 2011, onde um grupo de terroristas explodiu uma bomba que matou mais de 30 pessoas, deixando mais de 100 feridas. Mas aí vocês podem se perguntar: onde está a relação com jogos aqui?
A relação foi feita com a famosa fase No Russian de Call of Duty: Modern Warfare 2 (Multi). A quarta fase do jogo lançado quase dois anos antes do atentado coloca o jogador no papel de um agente infiltrado que participa de um ataque terrorista a um aeroporto russo fictício. Mais uma vez, uma correlação raza que ignora o fato de Russia e Chechênia possuírem uma história de mais de 10 anos de confrontos ainda não resolvidos. Como se terroristas precisassem jogar um jogo de videogame para terem a “brilhante” ideia de atacar um aeroporto do país “inimigo”.
Assassin’s Creed brasileiro?
Uma das histórias mais recentes de tentativa de justificar atrocidades com jogos ocorreu em São Paulo no ano passado. Um garoto de 13 anos, supostamente matou a família de policiais militares com precisos tiros na cabeça, cometendo suicídio logo após. Durante as investigações do caso, ao analisar o histórico do computador do menino foram encontrados vários jogos, um deles Assassin's Creed: Brotherhood. Nem é preciso falar que somente o título do jogo bastou para que a correlação fosse, mais uma vez, feita:A história do jogo acompanha Ezio Auditore durante o período histórico do Renascimento. O personagem, para quem não sabe, é membro da guilda dos assassinos e tenta impedir os planos dos templários, uma organização perversa que tenta estabelecer uma nova ordem mundial opressora e corrupta. Porém, como de costume, vários fatos foram ignorados: é tradição dos jogos da série acompanhar algum evento histórico “por baixo dos panos”; o personagem principal (controlado pelo jogador) raramente utiliza armas de fogo; os tiros efetuados no assassinato foram julgados precisos demais para uma criança de 13 anos.
Além disso tudo, se analisarmos o episódio utilizando a Psicologia do Desenvolvimento, encontramos a teoria de Jean Piaget, que nos diz que a criança normalmente passa a distinguir o real do imaginário (ou virtual) por volta de 7 anos de idade. Mais uma vez refutando a ideia de que uma criança de 13 anos cometeria um homicídio por influência direta (ou indireta) de games.
Yeah! Science, Bitch!
C.A. Anderson |
Se utilizarmos um pouco de estatística para analisarmos o caso do garoto brasileiro, por exemplo, temos um suposto caso de assassinato por conta de um jogo da série Assassin’s Creed contra 73 milhões de unidades vendidas dos jogos. Para a correlação videogame/violência chegar mais perto de ser plausível, seria necessário que cerca de 14 milhões de jovens cometessem algum homicídio por conta do jogo (considerando que é impossível fazer correlações positivas em pesquisas com ocorrência de menos de 20% do total). Um fato comprovado é que, segundo o governo norte-americano, o número de infrações cometidas por jovens diminuiu mais de 50% entre 1994 e 2010, coincidentemente o período de aumento vertiginoso das vendas de videogames. Essa não é, necessariamente, uma comprovação de que videogames diminuem a violência, mas comprova que eles não a influenciam positivamente.
C. Ferguson |
No final do ano passado, o Reino Unido conluiu um estudo de 10 anos de duração que fazia parte do UK Millennium Cohort (um relatório que observou como as crianças são psicologicamente afetadas pelo entretenimento). Iniciado em 2003, mais de 11 mil crianças participaram do estudo que comprova que os videogames não influenciam de forma negativa as características pessoais da criança nem, muito menos, aumenta as chances do desenvolvimento de doenças emocionais.
Por fim, Cheryl Olson, especialista de Harvard em saúde pública, demonstrou os benefícios psicológicos que os jogos podem ter sobre as crianças, como o aumento da facilidade de autoexpressão, dramatização, interações sociais e liderança. Entretanto, outros dados da pesquisa de Olson vão nos ser úteis para a discussão:
- De acordo com a sua pesquisa, entre os entrevistados, 28% dos meninos e 5% das meninas gostam de "pistolas e outras armas”;
- Cerca de 25% dos meninos e 11% das meninas concordam que os videogames ajudam a descarregar a raiva;
- Olson ainda afirma que a exposição constante a jogos violentos pode dessensibilizar as pessoas e banalizar a violência.
O ovo ou a galinha?
Agora que já vimos como as suposições sobre a influência dos jogos eletrônicos surgiram e como essa correlação está cientificamente errada, sobra uma questão semelhante à charada do ovo e a galinha: quem veio primeiro, a violência ou os games? Assim como podemos usar a biologia evolutiva para constatar que répteis já botavam ovos muito antes das galinhas existirem, podemos usar a história e a antropologia para ver que a violência veio muito antes dos videogames, dos filmes, da televisão, do rádio, etc.
A violência gratuita, como uma forma de espetáculo, vem de muito tempo atrás! O filósofo, historiador, filólogo e crítico Michel Foucault, em seu livro “Vigiar e Punir”, mostra que as execuções públicas, como enforcamento, decaptação e apedrejamento eram espetáculos em praças públicas, alguns deles datam do século V e VI. A guilhotina, por exemplo, teve seu último uso na França em 1977 (bem próximo de nós, não?). Se voltarmos mais ainda na história, antes até do marco 0 (o nascimento de Cristo), gladiadores duelavam até a morte em arenas no século VI a.C, na Roma Antiga, para centenas e até milhares de pessoas assistirem.
Hoje em dia, podemos observar que o gosto por violência gratuita não vem dos videogames e, muito menos, termina neles. O campeonato UFC de artes marciais mistas gera polêmica em diversos países mesmo sendo considerado um esporte, devido ao peso que as cenas de luta possuem. Indo mais perto ainda do nosso diaadia, quando começa uma briga (seja física ou verbal) em local público, a primeira coisa que acontece é a formação de uma multidão ao redor do ocorrido e praticamente em nenhum dos casos alguém está ali para separar ou mediar a briga, mas sim para observá-la.
Isso demonstra que a violência não é passada dos videogames para as pessoas, mas sim das pessoas para os videogames. Vou explicar. Ninguém é obrigado a comprar jogos considerados violentos, principalmente para os seus filhos menores de idade (lembrando que os jogos com violência explícita têm classificação indicadiva para maiores de 16 ou 18 anos). E a qualidade ou variedade de títulos não é comprometida por jogos não possuírem violência explícita; como exemplo, podemos citar as franquias Mario Bros., Skylanders, Pokémon, Rayman e até indies como Minecraft, Journey e Braid, sucessos de público e crítica e não possuem praticamente nenhuma violência explícita.
Mas por quê, mesmo assim, jogos como GTA, Assassin’s Creed, Call of Duty, Battlefield e Gears of War vendem na casa dos milhões? E sabemos muito bem que essas compras não são efetuadas exclusivamente por maiores de 16 ou 18 anos. A verdade é que a violência faz parte da humanidade. E se existem jogos violentos no mercado é porque as pessoas gostam deles e os compram. Não é uma imposição que os videogames fazem sobre os jovens, é um elemento inerente ao humano e à sociedade como um todo. Mas isso não é totalmente ruim.
Sociedade sem violência? Não é lá uma boa ideia
Sempre quando o assunto é violência, o foco gira em torno de lutas, mortes e guerras. Pelo fato de videogames mostrarem esse tipo de conteúdo com cada vez mais realismo, o senso comum julga os games como bodes espiatórios para problemas muito maiores presentes na sociedade. Mas antes de falarmos disso, precisamos deixar claro o que é considerado violência.
E aí voltamos aos dados da pesquisa de Olson. Segundo o pesquisador estadunidense, jogos violentos podem banalizar a violência. Humildemente discordo do pesquisador ao dizer que o problema não são os jogos em si, mas sim o significado que este jogo tem para quem o joga. Como já falamos, independente de Piaget, Freud ou outro teórico qualquer que influenciou a psicologia, a separação entre real e imaginário vem cedo na nossa vida (entre 5 e 8 anos). Jogos violentos banalizariam a violência se eles fossem reais, mas, mesmo com todo o realismo gráfico, eles não são reais. Jogos são uma forma representativa que, na maioria das vezes, foge e muito da realidade.
O problema não é a banalização dessa forma de violência, o problema real é a banalização da VIDA. Se a vida real, a vida de sujeitos reais, fosse considerada de forma digna e tivesse um valor maior na sociedade, o discurso seria outro, pois a morte seria algo restrito aos games, filmes e programas fictícios, e não aos telejornais. A violência em si não é o problema, o uso que o mundo tem feito dessa violência que é a questão chave aqui. É só observarmos as diversas formas de artes marciais; são práticas esportivas muitas vezes vistas como extremamente violentas, porém o que ocorre é que os esportes, assim como os videogames, são formas de aliviar a tensão, pulsão, instinto ou seja lá como é chamada essa força que os humanos têm desde o seu nascimento, que nos faz ansiar por algo estimulante e ativador, ou seja, algo violento.
Tem solução?
Seria uma hipocrisia e uma inocência imaginar que os problemas da sociedade seriam resolvidos somente encerrando as mortes, guerras e afins. Mas temos outros meios de reduzir essas questões que são científicamente comprovados, e não envolvem banir um jogo das prateleiras por ele conter sangue.
Como reduzir a violência real presente na sociedade? Fatos demonstram até mais que pesquisas: os países menos violentos do mundo são aqueles que possuem menos desigualdade social (não quero dizer aqui que os pobres são violentos, mas sim que a desigualdade gera violência). Outra forma comprovada de reduzir a violência: investimento em educação (tanto do governo quanto da família). Não basta entregar os filhos para as escolas e acreditar cegamente que eles voltarão para casa 100% educados. A Família enquanto instituição formadora de caráter é muito importante e possui um peso muito maior na vida da criança do que a escola ou os games, pois é através dos pais que a criança tem o seu primeiro contato com a cultura e a sociedade.
Enfim, esse assunto poderia gerar uma coleção de livros e não seria encerrado. Mas nós, amantes de games, temos o compromisso ético de tomar consciência desses fenômenos presentes na sociedade e tentar conscientizar as pessoas ao nosso redor disso também. Não necessariamente vamos salvar o mundo, mas pelo menos vamos estar embasados na próxima vez que um sensacionalista quiser colocar a culpa da sociedade sobre os nossos queridos jogos eletrônicos.
Mas e vocês, leitores? O que acham disso tudo? Concordam com a discussão? Possuem algum ponto de vista que não foi citado aqui? Discordam de tudo? Comentem! Pois é através da discussão construtiva que podemos nos fortalecer criticamente!
Revisão: Vitor Tibério
Capa: Felipe Araujo