O que o International (Dota 2) tem a ensinar para a indústria de games

Com a chegada do quarto International, e sua premiação histórica, é hora de ver o que a indústria de jogos tem a aprender com o fenômeno da Valve.

em 15/07/2014
“It felt like the start of something big – a revolution” (Parecia o começo de algo grande, uma revolução). Foi assim que Tammy Tang (jogadora profissional de Dota) descreveu o primeiro International, o campeonato mundial de Dota 2 organizado pela Valve. Três anos se passaram e hoje podemos ver que ela estava correta. O International desse ano será a competição com maior premiação da história dos eSports, com um total de mais de 10 milhões de dólares acumulados. Com tamanho sucesso o que será que as outras empresas podem tirar do modelo de negócio da Valve?

Mas o que é dota?

“Dota é uma combinação de futebol e xadrez” - Su-Leo Liu
Essa é a frase usada pelo comentarista Su-Leo Liu para descrever o que era Dota para seus pais. Embora seja uma aproximação simplória, ela consegue explicitar os dois pontos fundamentais do jogo: trabalho em equipe e estratégia. Com dois times de cinco pessoas, o objetivo de uma equipe em Dota 2 é invadir a base inimiga e destruir o Ancient adversário. Para isso, cada jogador escolherá um “hero” diferente, cada um com suas peculiaridades e estilos diferentes de jogo, e deverá combinar, das mais variadas formas, seus poderes com os de seus companheiros de equipe para assim chegar a vitória.
“Ele te dá a habilidade de virar uma outra pessoa, alguém que é poderoso, que pode derrotar cinco inimigos, expressar sua criatividade e quebrar as regras sem de fato ser punido.”Tammy Tang

Um pouco de história

O ano era 2011. A Valve anunciava o lançamento do beta de seu novo jogo, a sequência de Defense of the Ancients (ou DotA), Dota 2, e precisava dar visibilidade a esse. A empresa então convidou as 16 melhores equipes ao redor do globo para o que seria o primeiro campeonato mundial da categoria: O International. Com uma premiação de 1,6 milhões de dólares, um valor histórico para a época, o campeonato foi um sucesso de organização e audiência e criou a base para os campeonatos que viriam a seguir. Para saber um pouco mais sobre a história do primeiro International, aconselho fortemente o filme, feito pela própria Valve, Free to Play (todas as citações mostradas nesse artigo foram extraídas dele).

O International de 2012 não mostrou grandes avanços na organização, se comparado com seu predecessor, e apenas veio para consolidar o sucesso do novo jogo da Valve. Com a mesma premiação e com os times que mais se destacaram ao longo do ano que passara, o campeonato daquele ano trouxe o que para muitos é a maior jogada da história do competitivo de Dota, e dos MOBAs em geral: The Play.

Eis então que o ano de 2013 traz mais uma edição do International com um pequeno acréscimo: o compêndio (guardem esse nome, pois ele será muito importante mais para a frente). Uma espécie de “álbum de figurinhas”, o compêndio fora introduzido naquele ano como uma forma de integrar a comunidade com a competição e fazê-la participar da premiação. Além de dar alguns objetivos (ao melhor estilo kickstarter) que davam bônus e conteúdos novos para a comunidade, cada compêndio comprado revertia uma parte do lucro para a pool da premiação, fazendo com que o International 2013 fosse a competição de esporte eletrônico com a maior premiação da história, com incríveis 2,8 milhões de dólares. Desse total, cujo valor fora composto por 1,6 milhões originalmente designados pela Valve mais 1,2 milhões gerados pela venda dos compêndios, 1,4 milhões foram apenas para a equipe vencedora, Alliance, que conseguiu o título na última partida da melhor de cinco, com as jogadas que seriam conhecidas como “os dream coils de 1 milhão de dólares” (em referência à habilidade do personagem Puck que impediu por duas vezes os adversários de retornarem e defenderem a base, garantindo assim a vitória de sua equipe).

“Existem alguns times que possuem uma habilidade individual inacreditável e existe um grande grupo de outros times que possuem uma boa habilidade individual, não extraordinária, mas que vencem através de boas estratégias e trabalho de equipe” - Troels ‘SyndereN’ Nielsen

O grande prêmio

Eis que então chegamos ao ano de 2014 e ao campeonato que motivou a criação desse artigo: O International 2014. O que ele tem de tão especial? Eu respondo. Uma premiação total de mais de, segurem o ar, 10 milhões de dólares. Não, você não leu errado. Esse ano o campeonato mundial de Dota distribuirá mais dinheiro em prêmios do que em suas três edições passadas somadas.
O grande troféu conhecido como "Aegis Of Champions"
E como se chegou nesse valor histórico? Uma palavra: Compêndio (eu falei que ele ia ser importante, não?). Por mais incrível que possa parecer, a Valve mais uma vez disponibilizou apenas 1,6 milhões de dólares como premiação inicial. Fazendo as contas, é possível perceber que aproximadamente nove milhões de dólares foram angariados pela comunidade, tornando-a responsável por um acréscimo de mais de 567% na premiação inicial. Mas como a Valve foi capaz de tal façanha?
“Nós não estamos jogando porque somos ‘viciados’. Existe uma motivo. Um objetivo que, se formos bom o suficiente, podemos alcançar. ” - Tammy Tang

Mais do que um álbum de figurinhas

A chave para entender isso está nas mudanças que a empresa aplicou no Compêndio. Diferente de sua versão 2013, o Compêndio desse ano é quase um plano de metas individual, já que, além de alguns bônus adquiridos apenas por possui-lo, muitos outros podem ser destravados ao aumentar seu nível. E há duas formas de fazer isso. A primeira é jogando e adquirindo, ocasionalmente, pontos a cada partida. Isso, entretanto, pode demorar muito e tornar quase que impossível adquirir os bônus de níveis mais avançados. Logo, há também a opção de comprar esses pontos para acelerar o processo. E adivinhem? Para cada compra desses pacotes de pontos, uma parte do lucro também é destinada à pool da competição.
Mas isso por si só talvez não fosse o suficiente para explicar tamanho sucesso. O grande destaque da estratégia da Valve está em outro tipo de premiação para os jogadores: a coletiva. Como em uma espécie de “projeto kickstarter”, para cada valor que a premiação chegasse, alguma bonificação era desbloqueada para toda a comunidade detentora do compêndio, e as vezes até para os que não possuem esse.


Desde coisas simples dentro do jogo, como o courier baseado no personagem Pudge e emoticons para os chats, até completas reformulações gráficas e de áudio em heróis escolhidos pela comunidade, as metas do compêndio se mostraram um sucesso. E esse foi tão grande que a Valve foi obrigada a adicionar um novo pacote de objetivos, visto que os primeiros foram alcançados em uma velocidade que assustou até mesmo a própria empresa.
O tenente Squawkins, e seus barcos, são alguns dos itens que podem ser destravados

Algumas lições para a indústria

Mas no fim, o que a indústria de games como um todo pode tirar de todo esse sucesso? Primeiramente o modelo de free to play adotado pela Valve, tanto para o jogo como para o International em si. Além de tornar o torneio gratuito para visualização pelo próprio client do jogo, muitas premiações desbloqueadas pela venda dos compêndios foram disponibilizadas para toda a comunidade. Isso faz com que o item não ganhe um caráter obrigatório, mas ao mesmo tempo, devido a bonificações exclusivas, faz com que você deseje adquiri-lo. Criar o desejo de gastar dinheiro dentro do jogo, sem de fato obrigar o jogador a tal, é o grande objetivo de um jogo free to play e o que pode torná-los tão rentáveis quanto um jogo pago, e a Valve mostrou como é possível fazer isso.

Além disso, a Valve deu uma aula de interação com a comunidade, algo que falta para muitas empresas do ramo hoje em dia. Além de ouvir o pedido dos jogadores ao elaborar as metas do compêndio, muitas dessas tiveram total interação com a comunidade para serem implementadas. Um exemplo foram os reworks de gráficos e de áudio para um herói do jogo. Os heróis escolhidos foram votados por todos os detentores do compêndio, tornando a escolha desses (Viper e Slardar, respectivamente) um processo totalmente democrático e que gerou um resultado que agradou a comunidade como um todo. Essa interação, além de dar uma sensação de integração do usuário com o jogo, tornou as metas do compêndio mais atrativas, visto que no fim das contas seria a própria comunidade que escolheria seu prêmio.

A maior lição de todas

O International deixa algumas boas lições a serem aprendidas pela indústria de jogos, em especial na forma como essa interage com seu público e como tornar essa interação mais rentável e produtiva para ambas as partes. Mas talvez a grande lição não seja para a indústria, mas sim para todos aqueles que duvidam do poder dessa. Por muito tempo os eSports foram tratados com certo desprezo por todos aqueles que não estavam envolvidos com eles. Para várias partes, desde a indústria de entretenimento, passando pelos canais de comunicação, até famílias de jogadores, ser jogador de eSports não era, nem de perto, considerado um trabalho. Agora com uma premiação digna da categoria, a Valve e outras empresas que apoiam o esporte eletrônico mostram para o mundo que o eSport é uma modalidade que pode sim superar muitos esportes ditos “tradicionais”.
“Aquele criança que você achava que ‘jogava videogame demais’ agora pode percorrer um caminho onde ela receberá um salário anual de $250,000, viajará pelo globo e será patrocinada para isso. Videogames são a maior indústria de entretenimento do mundo, logo, se você é uma estrela nesse ramo, você potencialmente pode ser uma das maiores estrelas do mundo.” - James ‘2GD’ Harding
Revisão: Luigi Santana
Capa: Daniel Silva

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