Futebol e videogame: para todos que jogam bola com as mãos

As duas paixões se confundem na vida de todos os boleiros virtuais.

em 01/07/2014

Uma bola passa bem devagar na nossa frente, como se nosso ponto de vista assumisse a altura da guia da calçada. Quatro pés calçados com chuteiras sujas dançam enquanto alternam quem chuta a redonda. São dois jovens rapazes. José, corintiano, jogador preferido: Cristiano Ronaldo. Miguel, palmeirense, jogador preferido: Lionel Messi.



_Vamo em casa jogar PES?

_Pô, Zé, quem ainda joga PES? O negócio é FIFA agora, não sei por que tem gente que insiste com esse PES.

_Para com isso, o PES 2014 tá bem mais legal que o FIFA, você que não entende o esquema arcade do jogo. Quer simulação perfeita vai jogar bola de verdade…

Uma paixão dividida entre os pés e as mãos

Enquanto os dois amigos continuam discutindo, nosso olhar vai instantaneamente para outro lugar. Vemos um jovem adulto em meio a outras dezenas, quem sabe centenas, de outros jovens adultos, idosos, crianças, adolescentes, etc. Seu nome é Ricardo, flamenguista, jogador preferido: Zico, só pelas histórias contadas por seu pai. Depois de um dia cansativo no trabalho, Ricardo continua sua jornada de desânimo pelo metrô carioca. A cada dia que passa, fica mais indignado com seu emprego atual. Dizem que o trabalho dignifica o homem. Só se o homem, no caso, for o patrão. Um dia de cão! Ricardo chega em casa, pega um copo de suco, senta no sofá e liga um aparelho nada estranho aos nossos olhos. insere um disco – o tal do Pro Evolution Soccer 2014 – e, de repente, está no Camp Nou. Os olhos de todos no estádio se voltam para o mais novo contratado do Barcelona: Ricardinho. Com muitos dribles, uma assistência e um gol, ninguém poderia imaginar melhor estreia. Ricardo, do lado de cá da tela, esboça, pela primeira vez no dia, um sorriso verdadeiro.
Já não vemos mais o sorriso de um homem, mas sim a retina verde dos olhos de uma mulher. Érika, santista, jogador preferido: Giovanni, aquele da semi-final histórica contra o Fluminense em 1995. Ela também chega em sua casa após um dia difícil no trabalho. Solteira há algumas semanas, resolve se distrair da maneira que mais gosta. Na tela vemos escrito algo – FIFA 14. Mexe na escalação para deixar o time pronto para o próximo embate. Naquela realidade, Neymar ainda não deixou o time da baixada. Ele faz dois gols. “Mulher não gosta de futebol”, dizem por aí. Neymar faz mais um gol.

Driblando o próprio tempo

De repente, acompanhamos um rapaz descendo do ônibus. Vira duas ruas e chega em casa. Luiz Henrique, torcedor do Paysandu, jogador preferido: Roberto Baggio, que sofreu a maior injustiça do acaso ao errar aquele pênalti. Identificamos um pouco de tristeza no rosto de Luiz. Por sermos oniscientes, sabemos que esta se dá cada vez que ele se lembra das aulas de educação física. É sempre o último a ser escolhido. Seria irônico, não fosse trágico, o fato de que Luiz é o mais apaixonado e o maior conhecedor de futebol de sua turma, porém um grande perna-de-pau. Após chegar em casa, liga o antigo Super Nintendo de seu tio. Sopra umas duas vezes um cartucho intitulado International Superstar Soccer Deluxe e o coloca no console. Allejo é, e sempre será, o maior craque de todos os tempos. Luiz é, e sempre será, um craque junto com ele.
Deixamos de olhar aquela tela de 16-bits e passamos a enxergar um desses games realistas de alta definição. Um homem idoso olha seu neto brincar de videogame. Walter, cruzeirense, jogador (vindo do planeta terra) preferido: Tostão, jogador (vindo de qualquer outro lugar da galáxia) preferido: Pelé. Seu olhar passa um misto de carinho e confusão. Como pode essa garotada gastar tanto tempo nisso? Na sua época jogava futebol de botão. E como não tinha dinheiro para comprar os botões, fazia-os com casca de coco, a qual tinha de lixar para depois pintar com as cores do time. Lembrou-se com carinho das escalações que fazia, e da primeira vez que venceu seu pai. Se não acompanhássemos sua viagem ao passado, tal reviravolta nos pareceria aleatória, mas o fato é que Walter finalmente entendeu como a garotada gasta tanto tempo nisso.

O instante sublime de se gritar gol

Das lembranças do passado, agora nos movemos rapidamente para o presente. Em um quarto fechado está Roni, gremista, jogador preferido: Renato Gaúcho. Na tela de seu computador vemos um campo com onze nomes dispostos em um site chamado Cartola, ou coisa assim. Roni fecha o navegador e liga seu programa preferido: Elifoot 98. Escala seu time (não pode faltar o Mirandinha!) e vê sair gol atrás de gol. Depois passa para outro jogo que parece simular a vida de um treinador. Roni jamais irá realizar seu sonho de ser técnico de futebol – e por favor não contem a ele, ele ainda não sabe -, mas nos jogos de seu computador seu nome está gravado na história.
Passamos rapidamente por um quarto no qual quatro amigos fazem um pequeno campeonato de futebol no videogame. Henrique, corintiano, jogador preferido: Marcelinho Carioca. Lucas, torce apenas para o Brasil, jogador preferido: Hulk. Armando, são paulino, jogador preferido: Rogério Ceni. Fábio, palmeirense, jogador preferido: Rivaldo. A disputa que envolve risos, provocações e acirradas partidas, dura horas. Sinceramente, não nos importa quem a venceu.

Saímos do ambiente de disputa dos rapazes, e, como uma bola que dá voltas e voltas completas, retornamos nossos olhos para os amigos José e Miguel.

_Cara, o Cristiano Ronaldo só ganhou o prêmio de melhor do mundo porque o Messi tava quebrado.

_Ah Miguel, você tá de brincadeira com a minha cara! O Cristiano Ronaldo destruiu, e ele vai ganhar de novo o prêmio de melhor do mundo esse ano.

_Mas a copa conta bastante e com certeza Portugal não vai vencer…

Chegam em casa discutindo, e permanecem discutindo enquanto jogam alternadamente FIFA e PES. De táticas dentro do jogo, até lances da copa de 1962. De faltas que o juiz não deu no game, até faltas que deu na vida real. Talvez seja essa a forma de demonstrarem que precisam um do outro para viver, pelo menos nesse momento. O singular é que, mesmo discutindo sobre tudo, os amigos jamais debateram se amam mais futebol ou videogame.

Revisão: Jaime Ninice
Capa: Douglas Fernandes

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