BioShock (Multi) e suas influências filosóficas

Inspirado no livro A Revolta de Atlas, Bioshock usa e abusa do Objetivismo, corrente filosófica de Ayn Rand, na construção (e desconstrução) de seu mundo.

em 30/07/2014

Atenção: Este texto conterá spoilers da trama do jogo BioShock e do livro A Revolta de Atlas (Atlas Shrugged).

BioShock foi uma das melhores novas franquias da sétima geração. Seu primeiro lançamento, disponível para PS3, X360 e PC, quebrou o molde de shooters tradicionais e foi ovacionado por crítica e público. Entretanto, não é pelo gameplay primoroso que o game é mais lembrado. O grande diferencial do título é sua ambientação fantástica e história rica. Em alguns momentos, elas chegam a ser até mesmo filosóficas... literalmente.

O jogo, de fato, é fortemente influenciado pela corrente filosófica econômica e política criada por Ayn Rand nos anos 1940, o Objetivismo. A autora russo-americana expôs sua filosofia pela primeira vez no livro A Nascente (The Fountainhead), mas é seu segundo romance filosófico, A Revolta de Atlas (Atlas Shrugged) que inspirou diretamente o jogo de Ken Levine.


As semelhanças entre as tramas do game e do romance são notáveis: ambos contam com um grande empresário desiludido com a sociedade moderna, que ofusca e censura as mentes criativas. Para escapar dela, ele funda uma cidade utópica, separada de tudo. Neste lugar, as mentes brilhantes que outrora eram exploradas sem receber crédito algum, poderiam perseguir seus objetivos, sem o medo de censura ou intervencionismo por parte de governos e religiões.

Sem deuses ou reis, apenas homens

Mas Atlas Shrugged não era apenas um romance de ficção. Ayn Rand pretendia que o livro fosse o principal expoente de sua corrente filosófica. Rapture, a cidade submarina fictícia de BioShock, bebe diretamente do sistema objetivista.

O Objetivismo gira em torno da individualidade; é uma corrente que percebe a busca pela felicidade própria e egoísmo racional como princípios morais da vida humana. Qualquer sistema social que inviabilize esta busca de alguma forma é, sob esta ótica, danoso. As ideias de altruísmo e serviço social são completamente negadas. O ser humano, dizem os objetivistas, não deve viver ou sacrificar sua felicidade por nada ou ninguém  — seja uma pessoa, seja uma instituição.

Por isso mesmo a corrente filosófica é extremamente alinhada ao liberalismo econômico, pregando um Estado mínimo e capitalismo livre e sem regulações como únicos ambientes que respeitam plenamente as liberdades individuais de cada pessoa. Uma sociedade perfeita seria aquela em que nenhum humano depende do outro e todas as conquistas são fruto do esforço individual, com todas as relações baseadas na pura meritocracia.

Estes são apenas os princípios básicos da filosofia, meramente a superfície. Há todo um arcabouço teórico por trás dessas conclusões. O sistema filosófico, na verdade, toca em ramos da metafísica, ontologia, epistemologia, ética, metaética e outras palavras feias. Entretanto, não é preciso se aprofundar muito para perceber que Rapture não passa de uma utopia objetivista levada à suas últimas consequências.

Andrew Ryan, personagem de BioShock criador da cidade subaquática (qualquer semelhança com Ayn Rand não é mera coincidência), a concebeu como um esconderijo daqueles que considerava "parasitas" — governos e instituições que apropriavam-se dos esforços e conquistas individuais de outras pessoas sob a premissa de que o faziam por um "bem maior". Em Rapture, dizia o visionário engenheiro, o homem teria direito ao suor de seu rosto, sem o perigo de vê-lo roubado pelo Estado ou religião.
Cada indivíduo agindo somente em próprio interesse influenciaria a sociedade como um todo, criando um movimento relativamente unificado. A economia livre funcionaria como uma Grande Corrente, puxada pelos esforços naturais de cada participante e guiada somente pelas leis de preço, distribuição, oferta e demanda. Restringir o mercado de qualquer forma seria limitar o movimento dos elos dessa corrente — ou seja, de cada cidadão. A liberdade do povo estaria diretamente ligada à liberdade econômica, e Rapture seria a utopia onde a liberdade é plena.


"Eu vejo ADAM, Mr. B!"

Ou o mais plena possível. Havia uma única restrição no comércio rapturiano: era proibida a comercialização de produtos da superfície. Andrew Ryan temia que qualquer contato com o mundo acima revelasse sua cidade aos "homens em Washington e Moscou", levando os "parasitas" a tomar sua utopia. Entretanto, ele ignorava uma das regras mais básicas do mercado: se uma demanda existe, ela será suprida de alguma forma por alguém. Este alguém foi ninguém menos do que Frank Fontaine, futuro arqui-inimigo de Ryan.

Contrabandeando produtos da superfície, Fontaine enriqueceu rapidamente. Ignorante de suas atividades ilegais, Ryan via o comerciante como um exemplo: um homem oriundo das classes mais baixas da sociedade, alcançando grandes alturas graças ao seu trabalho, iniciativa e liberdade de mercado. Ele era a prova definitiva de que em sua utopia (e somente nela) indivíduos determinados podiam subir ao poder valendo-se somente de seus próprios esforços.

Fontaine logo criou outros ramos de comércio, dentre eles a epônima Fontaine Futuristics. Nesta instituição surgiram o ADAM e os plasmídios, poderosas substâncias capazes de modificar a genética humana, dando aos usuários poderes e habilidades inimagináveis... além de uma série de terríveis efeitos colaterais se abusadas: dependência física e psicológica, loucura, alucinações e morte.

Tais empecilhos não impediram o sucesso do produto. Para suprir a demanda desse novo mercado, Fontaine criou também as instituições Little Sister's Orphanage e Fontaine's Home for the Poor. As operações aparentemente humanistas escondiam uma verdade incômoda: os pacientes dessas instituições eram usados como cobaias em experiências científicas. Eles não passavam de “material” para criação de novas Little Sisters e Big Daddies, essenciais para produção em massa de ADAM.

Sem qualquer tipo de regulação farmacêutica, ética ou moral, a droga logo viciou toda população da cidade. Em pouco tempo surgiram os Splicers — pessoas que abusaram da substância, perdendo a sanidade e sofrendo grandes deformações físicas. Mesmo diante dos terríveis danos causados pelo produto, Andrew Ryan foi contrário a sua proibição, firme em manter a filosofia objetivista. "O mercado é paciente", dizia. Ainda que lentamente, a Grande Corrente se moveria, conduzindo a sociedade para a direção correta.

Revolta nas ruas

Esta cadeia de eventos fez a utopia desmoronar. A ética objetivista lida apenas com seres humanos, em sua luta natural pela sobrevivência. O interesse de todos os homens estariam em harmonia devido a natureza específica e convergente da humanidade. A partir do momento que os habitantes de Rapture transformaram-se em Splicers — seres pós-humanos — tal corrente filosófica não foi mais capaz de sustentar essa sociedade.

Ryan não sucumbiu ao ADAM. Não obstante, ele renegou sua humanidade de outra forma. A natureza humana só pode operar através da razão, sendo esta impossível de operar sob o uso da força, coerção e violência. Como bem disse a inventora do Objetivismo, "não é possível tomar uma atitude racional quando se tem uma arma apontada para a sua cabeça". Sentindo-se ameaçado pelo crescimento de Fontaine, o líder começou a persegui-lo politicamente, fazendo uso de artifícios como ameaças, torturas e assassinatos. Em sua caça por seu rival, o engenheiro abandonou seus princípios e sua humanidade.

Em pouco tempo, eclodiu uma guerra civil na cidade subaquática. Recursos básicos começaram a faltar e o dinheiro perdeu todo o valor. Tentando conter as revoltas, Ryan recorreu a medidas cada vez mais ditatoriais, tornando-se o que mais odiava. A Grande Corrente logo cessou o movimento. A utopia objetivista transformou-se numa distopia submarina.

Um homem escolhe, um escravo obedece

Acuado, Fontaine simulou sua própria morte. Ainda obstinado a dominar Rapture, partiu para a dissimulação e manipulação. Das sombras, ressurgiu como Atlas. Para as massas abandonadas da cidade, um visionário que os guiará na luta contra o cada vez mais tirano Ryan.

Em vários pontos da distopia submarina é possível ver cartazes com os dizeres "Quem é Atlas?", emulando a famosa frase "Quem é John Galt?", presente em vários trechos do livro A Revolta de Atlas. Assim como Galt, protagonista da obra literária, Atlas lutava em anonimato usando táticas de guerrilha, contra forças censoras de um Estado opressor. Diferente do herói randiano, seu objetivo não era criar uma utopia onde indivíduos excepcionais pudessem brilhar, mas conquistar um império falido e moldá-lo a sua própria imagem.


Sua principal arma para conseguir este objetivo era Jack, o protagonista do jogo. Filho bastardo de Ryan, ele é manipulado psicologicamente e fisicamente para matar seu próprio pai e entregar a cidade a Fontaine. Desde muito pequeno, sofreu uma lavagem cerebral. Ao soar das palavras "Would you kindly?", faz qualquer coisa ordenada sem questionar. Ele é um homem sem livre arbítrio, vivendo inteiramente para servir os desejos, ordens e vontades dos outros.

Numa sociedade pós-objetivista e trans-humana, cercado de pessoas mutiladas e doentias, Jack acaba sendo menos que um humano. Sem individualidade, sem escolhas, sem destino. Um escravo das vontades de outro. Sob a ótica objetivista, uma verdadeira abominação.

Jack é a antítese de toda filosofia rapturiana — e por isso mesmo é a pessoa perfeita para dar fim àquela distopia.



Revisão: Marcos Silveira
Capa: Vitor Nascimento

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