O bloco soviético no Street Fighter: as fases do Zangief

Um passeio turístico pelas regiões icônicas da União Soviética ao lado do Ciclone Vermelho.

em 28/06/2014

No começo de 1991, a Capcom lançou o que seria um dos jogos de luta mais icônicos da história. Street Fighter II (Multi) foi o pioneiro em um dos gêneros mais disseminados e populares a partir de então. Avançar até o último oponente usando só uma ficha do fliperama ou sem apelar para os continues nos consoles era um dos pequenos desafios que a garotada tinha na época. Outra glória consistia em desafiar um jogador enquanto ele tentava chegar até o Bison e despedaçar seus sonhos usando combinações injustas de um personagem apelativo.

Neste mesmo ano, outro grande acontecimento abalou o mundo, este tendo um pouco mais de relevância: em dezembro de 1991, a União Soviética se desfizera, seus estados membros declarariam independência e a Guerra Fria foi congelada de uma vez por todas. Os EUA se tornariam a única superpotência e muitos professores esquerdistas de ciências humanas partiram para o alcoolismo.

A Capcom não sabia, mas eles foram um dos últimos a usar o contexto soviético quando ele ainda era atual.

Sugestão de áudio para a sua leitura:


Adeus, Lenin!

Conhecido como um dos personagens menos relevantes no rol de opções dos jogadores, Zangief geralmente servia como saco de pancadas durante o modo single player, tomando Hadoukens e Tiger Robocops à rodo. Seus golpes eram limitados, sua movimentação lenta e seu tamanho era propenso a tomar golpes vindos de qualquer direção. Apenas os mais dedicados conseguiam dominar a fina arte do pilão giratório.

Depois da queda da URSS, a Rússia ressurgiu como nação e os anos rubros do comunismo a lá Stalin foram lentamente sendo esquecidos na memória coletiva. Estátuas de Lenin foram ao chão, a foice e o martelo deixavam de ilustrar paredes, panfletos e pátios de siderúrgicas e McDonald’s começaram a brotar nas ruas moscovitas. Mikhail Gorbachev passaria as rédeas para Boris Yeltsin e seu lutador favorito voltaria às gélidas florestas siberianas para treinar. A nação ainda precisaria de seus músculos mais uma vez.



A partir de Street Fighter IV (Multi), o Ciclone Vermelho representaria a Rússia e não mais lutaria pela glória do socialismo. O proletariado não mais assistirá ao seu ídolo dando pilões giratórios nos pobres capitalistas durante as folgas no árduo trabalho de forjar metais e tudo relacionado à URSS foi sendo lentamente assimilado pela nova realidade global.

Mas, antes de SFIV, muita terra rolou na história da série. Tivemos várias versões que abordavam o que aconteceu antes do torneio no jogo de 1991. Como a URSS ainda existia na linha histórica, o contexto soviético continuaria a ser exibido. Convido você, nostálgico leitor, a dar mais uma olhada nestas verdadeiras homenagens ao bloco soviético:

No Street Fighter, a União Soviética visita VOCÊ!!!

Street Fighter Alpha II (Multi) chegou em 1996. O terror do comunismo já não assombrava mais os lares dos ocidentais e sua dispersão se limitava a poucos países periféricos. Mas na época retratada em SFAII, a URSS ainda era uma superpotência de respeito.
Arena Metalúrgica, palco das lutas contra o Ciclone Vermelho em Street Fighter Alpha II
A briga com Zangief se dá em uma metalúrgica, com área específica para o trabalhador assistir seu herói destrinchar suas vítimas: um pátio com cercados protegendo os lutadores (e/ou a plateia). Aqueles enormes cabos de energia dão uma sensação a mais de segurança. O patriotismo soviético aparece em todos os cantos, com bandeiras espalhadas pela fase e frases de incentivo escritas com letras garrafais (em cirílico) no telão.

Não há muito o que dizer sobre a multidão assistindo ao espetáculo. A grade bloqueia muito do que poderia ser avaliado ao público, que agora parece uma massa uniforme. Alguns homens de chapéu (destaque para o misterioso homem de preto no canto esquerdo) e um aparente comissário do soviete no lado direito, com o icônico quepe largo e o bigode de morsa.

Luta particular: proibido a sua entrada

A União Soviética é mais uma vez retratada em Street Fighter Alpha III (Multi), desta vez de uma forma triste: uma única bandeira tremula no meio do estágio, a foice e o martelo desenhados em amarelo pálido no chão do ringue, quase invisíveis. É como se a república socialista estivesse a poucos dias de seu fim.

O forno de Akademgorodok
Fãs de lutas em ambientes hostis poderiam dizer que uma briga dentro de uma forja quase abandonada estaria entre as melhores ideias possíveis. O metal derretido está apenas a alguns passo e uma voadora bem dada poderia facilmente transformar o oponente em uma peça de tanque ou numa panela.

A área aparentemente foi evacuada. As chances de um pilão danificar o prédio e transformar uma inocente luta em um desastre com chamas e ferro derretido são altas. Não há barras de segurança por perto e uma pessoa nas plataformas superiores poderia cair ao menor tremor. Segurança em primeiro lugar, pelo menos para quem não está na luta!

Se partimos da suposição que SFAIII acontece pouco antes de 1991, a União Soviética estava cambaleante, mas o urso ainda se mantinha em pé. O final do maior império comunista que já existiu poderia não se importar muito com as condições trabalhistas ou mesmo com a qualidade de sua produção nos fins dos anos 1980, o que explica as condições na próxima fase que iremos abordar:

Ao proletariado, com carinho

O primeiro Street Fighter a apresentar o Ciclone Vermelho e seu mais querido fã, Mikhail Gorbachev juntos, também apresenta uma das fases mais absurdas já feitas por um game developer.
Trabalhadores bebendo em serviço? Jovens rebeldes com seus cabelos compridos fazendo gestos obscenos? E qual é a daquele baixinho todo de branco?
Vamos por partes:

Beber em serviço já não era algo muito aceito nos anos 1990. Lá pelo século XVII, o café ainda não era uma bebida muito conhecida pelo europeu. O trabalhador comum acordava pela manhã e bebia um bom gole de cerveja (quente!) para digerir seu pão (duro!) e assim ia para o ofício.

Após notarem os óbvios impactos que o álcool causava no serviço, a cevada foi lentamente sendo substituída pelo café na preferência matinal. Na União Soviética do século XX, levar vodca para a firma geralmente significava uma passagem só de ida para a Sibéria. Mas como o camarada na fase do Zangief aparentemente estava de folga — e ao lado de guardas e companheiros de trabalho, que parecem não dar a mínima para o conteúdo da garrafa — o goró devia estar liberado. Vejam como ele bebe sem a menor vergonha.

E quanto aos cabeludos na plataforma superior? Nos anos 1980, cabelos compridos estavam tão na moda no mundo quanto os discos do Roberto Carlos e dos calçados Kichute no Brasil. Além da mensagem rebelde que estava na alma russa desde 1917, homens com cabelos compridos eram populares com as garotas. Influência dos Beatles, aquele símbolo subversivo? Não! Acreditem se quiser, mas a URSS também criou ótimas bandas de rock, como Aria e Nautilus Pompilius. Apesar deles também adorarem fazer um cover do Paul McCartney.

É difícil perceber, mas se olharem bem de perto, dá pra notar também que um deles — o garoto de branco, no meio — está exibindo toda a sua rebeldia juvenil para o telespectador gamer. Em qualquer sociedade, o gesto é comparável a “vodca no serviço”. Mas estamos falando da Rússia. Comparado ao que a garotada faz por lá nos dias de hoje, isso é o de menos.

E como diabos eles conseguiram chegar ali?! Ah sim, os guardas também estão assistindo ao espetáculo, bem ao lado do bebum.

Depois da queda do Muro de Berlim

Depois da viagem pela Rússia comunista, a série Street Fighter passou a retratar regiões remotas e turísticas do país, ou quase: a Basílica de São Petesburgo, uma estação de trem isolada nos confins do ártico ou esse laboratório medonho.

A União Soviética podia não ser um dos melhores lugares para se viver, mas a Capcom certamente não queria passar uma imagem negativa de uma das nações mais influentes da história. Pelo que vimos, a terra dos fuzis Kalashnikov, da tenista Maria Sharapova e dos vídeos de acidentes de carro mais sem noção da internet possuem muito mais do que bandeiras vermelhas e trabalhadores embriagados.

Revisão: Catarine Aurora
Ilustração: Leonardo Correia

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