Primeiramente, peço que todos tenham bastante calma antes de levantar os tridentes contra essa matéria. Estamos abertos a opiniões contrárias, é claro, mas não deixem de ler esse artigo até o fim. Separei ele em seis argumentos, para ficar mais claro o porquê de eu dizer que videogames não são obras de arte.
1. Nem toda cultura é arte
E essa é uma confusão bem comum. Por mais que se diga que são categorias diferentes, muita gente acaba explicando ambas como "qualquer produção humana". Bom, essa é a definição de cultura, mas não de arte. Arte é, sim, uma produção eminentemente humana, mas tem suas particularidades. Isso fica claro quando admitimos que boliche, guerra, PEC 37, estudar para uma prova, budismo, pedir esmola ou virar de costas não são arte.
Ou seja, há categorias que são cultura, mas não são arte. E os jogos e videogames são exatamente isso: cultura, sim; arte, não. Por isso, essa discussão não é se jogos são ou não são cultura, inicialmente desencadeada pelo depoimento da Ministra da Cultura, Marta Suplicy, pois já partimos do pressupostos de que são sim manifestações culturais.
Não. É nesse ponto que quero tocar: não é uma inferiorização considerar os jogos como cultura, mas não arte. Veja bem, arte não é uma categoria superior de cultura, o suprassumo da produção humana e o mais alto patamar da criatividade. São categorias diferentes, até como gesto de humildade, cuja diferença vem de particularidades e não de níveis diferentes da mesma medida.
Ou seja, há categorias que são cultura, mas não são arte. E os jogos e videogames são exatamente isso: cultura, sim; arte, não. Por isso, essa discussão não é se jogos são ou não são cultura, inicialmente desencadeada pelo depoimento da Ministra da Cultura, Marta Suplicy, pois já partimos do pressupostos de que são sim manifestações culturais.
Está dizendo então que jogos são uma forma de cultura inferior às artes?
Não. É nesse ponto que quero tocar: não é uma inferiorização considerar os jogos como cultura, mas não arte. Veja bem, arte não é uma categoria superior de cultura, o suprassumo da produção humana e o mais alto patamar da criatividade. São categorias diferentes, até como gesto de humildade, cuja diferença vem de particularidades e não de níveis diferentes da mesma medida.
Diferenciar cultura e arte, sem hierarquizar, é o primeiro passo |
2. Uma coisa não é meramente a soma de suas partes
Outro argumento usado para defender os videogames como arte é: jogos têm trilha sonora, têm visuais, têm enredo e uma porção de outros elementos. Como sabemos que música, artes plásticas e literatura são arte, a presença desses elementos supostamente faria do jogo arte - ou ainda, uma arte que congrega vários outros tipos de arte. De fato, considero todos esses três elementos como arte, mas eles estarem juntos no mesmo produto não faz desse produto uma arte por consequência. Simplesmente porque uma coisa não é a soma de suas partes, da mesma forma que não podemos resumir um grupo de cinco pessoas em cinco indivíduos.
Ter obras de arte embutidas não faz da coisa em sí uma obra de arte também |
Pense, por exemplo, em seu quarto. Você pode colocar o álbum de sua banda preferida para tocar, pregar um quadro de um pintor famoso na parede e pintar as paredes com mosaicos abstratos. Isso, no entanto, não fará de seu quarto uma obra de arte.
3. Interesses econômicos X Obra de arte
Arte é, fundamentalmente, um trabalho de criatividade humana feito com uma intenção e com alta capacidade questionadora, "incomodadora", instigadora, que muitas vezes desafia o apreciador e cujas mudanças nos estilos e escolas vêm da ousadia de fazer algo que o interesse da época não gosta.
Mas do que você está falando? Hoje arte não é nada mais do que tentar ganhar dinheiro! E mesmo as mais belas artes têm um interesse econômico por trás.
Nos videogames, no entanto, o interesse econômico é o crucial! Quando se fala em jogos, fala-se em uma "indústria de games", "ramo dos jogos", "consumidores". A gente vê claramente pelo número de remakes, reboots, sequências e sequências e sequências. A "qualidade artística" dos jogos é muito mais facilmente descartada em prol do lucro.
E os exemplos são vários. Super Mario World (SNES) foi finalizado mais rápido do que deveria para poder ser lançado junto com o SNES, Call of Duty lucra mais a cada novo episódio, jogos trazem DLCs para se lucrar em cima de conteúdo extra, games não são lançados para Wii U por que não venderiam bem…
A produção de mais Mario da repetitiva série "New" é justificada não por criatividade, mas por desejo de vender - e vende muito bem |
O quão plena é uma produção fatiada em tantos e tantos pedaços? |
4. Incômodo X Agradabilidade
Obras de arte muitas vezes se baseiam no incômodo às estruturas e crenças sociais vigentes, têm uma altíssima carga enigmática, poucas vezes dando bola para o fato de serem agradáveis ou não. Artes por vezes não são criadas com o interesse de serem fluidas, de fácil entendimento ou de tranquila leitura. Muito pelo contrário, elas incomodam sentimentos e têm um poderoso papel de crítica social. Jogos, por outro lado, são criados para agradar seus jogadores, porque seu interesse é realmente o de vender.
Dessa concepção que vêm as toneladas de tutoriais presentes nos jogos, as modas e as tendências, o interesse absurdo dos desenvolvedores pela opinião dos jogadores… Por exemplo, enquanto José Saramago escreveu livros com potenciais incríveis sem dar a mínima para as regras de pontuação, Super Mario Bros. continua sendo a expressão máxima dos jogos valendo-se de regras de design para fases e de enredo e filosofia sem nenhuma ruptura com o típico machismo, padrões de beleza tradicional e padrão racial.
Dessa concepção que vêm as toneladas de tutoriais presentes nos jogos, as modas e as tendências, o interesse absurdo dos desenvolvedores pela opinião dos jogadores… Por exemplo, enquanto José Saramago escreveu livros com potenciais incríveis sem dar a mínima para as regras de pontuação, Super Mario Bros. continua sendo a expressão máxima dos jogos valendo-se de regras de design para fases e de enredo e filosofia sem nenhuma ruptura com o típico machismo, padrões de beleza tradicional e padrão racial.
Nada a ver! Antigamente tínhamos jogos mega difíceis, e mesmo hoje temos títulos hardcore nada agradáveis.De fato, isso é verdade. No entanto, há dois pontos que separam a dificuldade dos videogames dos desafios propostos pela arte: o interesse dessa dificuldade e sua natureza. Não se enganem, na época dos fliperamas, os jogos eram difíceis porque se precisava fazer o jogador comprar mais e mais fichas e para aumentar a duração do jogo, uma vez que não dava para programar aventuras muito longas naquela época. Com a "domesticalização" dos consoles, os desenvolvedores preferiram reduzir essa dificuldade para agradar as massas e porque, estando o jogo nas mãos dos jogadores agora, eles não precisariam se estressar mais pagando por vidas extras (e essa mesma lógica hoje retorna nos joguinhos de celular que precisam de pagamento para continuar a jogar). Muito pelo contrário: com os jogos em casa, é hora de agradar toda a família.
Não se enganem: a dificuldade não era uma escolha artística |
E, até mesmo nos dias de hoje, dificuldade é uma escolha de mercado |
Temos que admitir que o desafio proposto pela arte não é da mesma natureza do proposto pelos jogos |
5. Presos à tecnologia
A relação que os jogos têm com a tecnologia é bem diferente da maneira como os avanços técnicos e de divulgação têm com as artes. Os jogos em sua maioria apresentam uma atualização a cada nova tecnologia, amplificando seus aspectos anteriores.
A relação que se tem aqui é de progressos feitos na mesma medida pelos jogos e pelas novas técnicas, novos consoles, novos poderios técnicos, etc. Ou seja, mais capacidade sonora equivale a maior aproveitamento sonoro nos jogo.
Enquanto que, nos jogos, um aumento nas capacidades técnicas do PS3 para o PS4 quase que resumem o progresso nos games lançados; nas artes, a relação é muito menos digital e mais analógica. Por exemplo, a invenção da TV não fez com que as novelas de rádio tivessem um upgrade que se resumisse ao progresso técnico (a transmissão das imagens), mas criou um gênero novo das novelas, com suas próprias particularidades irredutíveis à mera introdução das imagens. Ou seja, as novas tecnologias predominantemente criam novos ramos de arte, enquanto, nos jogos, novas tecnologias, em sua maioria, melhoram, numa relação direta, o que já tínhamos antes. É claro que alavancas analógicas, botões traseiros, recursos online e sensores de movimento alterarão os jogos de outra maneira, mas não são o que predominam.
A relação que se tem aqui é de progressos feitos na mesma medida pelos jogos e pelas novas técnicas, novos consoles, novos poderios técnicos, etc. Ou seja, mais capacidade sonora equivale a maior aproveitamento sonoro nos jogo.
Mas o mesmo acontece com as artes! As produções melhoram a cada nova tecnologia!Pois bem, isso não é bem assim. As obras de arte têm um aspecto atemporal muito mais forte do que nos videogames. Não se poderia, por exemplo, imaginar um remake do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas ou uma versão melhorada de Monalisa, da mesma forma que não se tem necessidade de recriar Deus e o Diabo na Terra do Sol com um aparato de produção melhor. É claro que, por um aspecto, é porque os autores dessas primeiras duas obras já estão mortos, o que embate com outro aspecto da autoria dos jogos: elas são espalhadas por muitos funcionários (não se fala muito em artistas) e tem seu conteúdo e manipulação quase que de domínio público. Outro aspecto que impede essas recriações é justamente a outra relação da arte com a tecnologia: ela não é de progresso na mesma medida.
Enquanto que, nos jogos, um aumento nas capacidades técnicas do PS3 para o PS4 quase que resumem o progresso nos games lançados; nas artes, a relação é muito menos digital e mais analógica. Por exemplo, a invenção da TV não fez com que as novelas de rádio tivessem um upgrade que se resumisse ao progresso técnico (a transmissão das imagens), mas criou um gênero novo das novelas, com suas próprias particularidades irredutíveis à mera introdução das imagens. Ou seja, as novas tecnologias predominantemente criam novos ramos de arte, enquanto, nos jogos, novas tecnologias, em sua maioria, melhoram, numa relação direta, o que já tínhamos antes. É claro que alavancas analógicas, botões traseiros, recursos online e sensores de movimento alterarão os jogos de outra maneira, mas não são o que predominam.
6. Ok, mas e as exceções?
Conheço jogos que me desafiam a interpretar! Conheço jogos que têm alta crítica social! Conheço jogos que não foram feitos para lucrar!...Sim, eu também. E, no geral, gosto muito deles, mesmo que quase todos sejam usados como bandeira do discurso de que jogos são obras de arte. Mas, assim como eu poderia chegar a dizer que há jogos que são arte, seria perfeitamente capaz de chamar alguns filmes hollywoodianos e muitos livros modinha de não arte. Então por que não digo que jogos são arte? Porque estou falando de categorias e, como tal, é preciso entender que a expressividade dessas exceções não é o bastante para alterar a alcunha de seus conjuntos.
Muita gente trata alguns jogos como arte, diferentemente de outros títulos. Mas será que isso é relevante? |
Ainda assim, não deixa de ser interessante essa tentativa de fazer arte com videogames |
E de que forma isso seria benéfico para os jogos?
Primeiramente, entendendo que não ser arte não faz dos jogos uma expressão cultural de menor qualidade. Em segundo lugar, jogos não serem arte permite que os classifique de maneiras muito mais condizentes com suas realidades e, dessa forma, poder cobrar deles o que realmente "prometem" fazer. Por exemplo, podemos enquadrar os jogos como esportes em alguma medida, visto as competições por bons scores nos mais diversos títulos, as corridas sanguinárias pelos recordes nos speedruns ou mesmo pelas competições fervorosas em jogos de luta e MOBAs da vida. Daria, por exemplo, para cobrar dos jogos aspectos que satisfaçam quem tem essa fome por competição.Ou, mais fácil ainda, poderíamos classificar os games como produtos recreativos e atividades recreativas - como a própria Nintendo prefere se referir a eles. Dessa forma, poderíamos deixar de cobrar com tamanha excessividade a inovação dos jogos e demonizar a repetição de séries. Além disso, não precisaríamos cobrar discussões sociais e debates filosóficos em uma jogatina de Sonic ou Street Fighter.
Assim, não estaríamos forçando a barra para enquadrar os jogos em categorias que só trariam mais e mais conflitos identitários para eles. Não é nenhum crime comprar um produto para se divertir e não é regra que esses produtos precisam ser coisas simples (diferentes de um jogo). Dá, sim, para ver os jogos como esporte, recreação ou outras categorias que não são arte, mas que não tiram a qualidade dos nosso títulos preferidos.
Revisão: Luigi Santana
Capa: Douglas Fernandes