O que a indústria tem a aprender com a Microsoft?

Como a gigante americana conseguiu melhorar a imagem do seu console enquanto dava uma aula de gestão de crises aos seus concorrentes.

em 22/05/2014
Muito se fala sobre todos os deslizes da Microsoft desde o conturbado anúncio do Xbox One. Jogos atrelados a consoles, um videogame que, para funcionar, deve estar conectado à internet o tempo todo e um Kinect que deixava de ser um mero acessório para jogadores casuais e passava a ser a base de um sistema operacional confuso e pouco funcional. Contudo, pouco vem se falando quanto à forma com que a empresa americana vem reagindo a todas as críticas. A indústria dos jogos eletrônicos tem como um de seus principais pilares a inovação, e nenhuma delas está isenta da possibilidade de falhar miseravelmente e não agradar o público alvo. Aconteceu com o Virtual Boy, console mais falho já lançado pela Nintendo; com o Game Gear, portátil da Sega que não chegou nem a tocar as unhas dos pés do Game Boy, da Nintendo; com o controle bumerangue do PlayStation 3 (alguém se lembra dele?) e com diversos outros produtos de empresas que tentaram trazer algo diferente para a indústria.


A Microsoft teve sua chance. A mais recente gigante da indústria sempre aspirou por um sistema que fosse capaz de ser uma central multimídia e tentou avançar lentamente em sua meta com o Xbox e o Xbox 360. Com o Xbox One a empresa tentou levar tudo a um novo patamar, e isso é admirável, mesmo que vários dos conceitos tenham se provado falhos com o tempo. Mas não é sobre a central multimídia e tampouco sobre as inovações que estou tentando discutir, e sim sobre a forma com que a empresa soube lidar com todas as críticas que recebeu desde o início do ano passado.

Uma breve retrospectiva

Anunciado há exatamente um ano e um dia, o novo console da Microsoft se tornou rapidamente uma grande piada em toda a comunidade gamer. Sem jogos ou qualquer coisa que lembrasse um videogame, o console mais parecia um decoder de TV a cabo com cara de videocassete do que qualquer outra coisa. O novo e desajeitado console da Microsoft seria controlado por voz e seria capaz de realizar grandes firulas, como reconhecer os usuários toda vez que eles chegassem perto do aparelho e atender a qualquer comando de voz que envolvesse os aparelhos de sua sala. Diversos aplicativos relacionados a televisão foram anunciados e até séries exclusivas para o console já estavam em desenvolvimento.
Era o anúncio de um console, mas parecia o evento da nova programação da Rede Globo
Quando a apresentação terminou, restou nos jogadores apenas o gosto amargo da decepção. Sem jogos anunciados (exceto por um nada surpreendente Call of Duty com cachorros), e um foco total em aplicativos de televisão, diversas montagens começaram a pipocar pela internet e o que deveria ser uma grande revelação se tornou apenas uma grande piada.
Eis o grande mascote da apresentação (NOT)
Com a E3 se aproximando, os jogadores começaram a se perguntar que chances teria a Microsoft com seu console, já que o PlayStation 4 já mostrava sinais de uma line-up forte enquanto no Xbox One, até então, poderíamos apenas assistir programas de TV e jogar Call of Duty. A feira até foi animadora em certo ponto: com uma line-up poderosa, que incluía Killer Instinct, Dead Rising 3, Forza Motorsport 5 e Titanfall, a empresa conseguiu provar ao mundo que seu console seria capaz de brigar de igual para igual com seu concorrente. Ou quase conseguiu.
Killer Instinct foi uma grata surpresa para os mais céticos quanto ao novo console da Microsoft
O anúncio da line-up do Xbox One teria sido incrível se não fossem pelas políticas extremamente restritivas que a empresa estava impondo aos jogadores: o DRM dos jogos acabaria de vez com o comércio de jogos usados e o console deveria estar conectado o tempo todo à internet para funcionar. Além disso, o Kinect deveria ficar conecatado o tempo todo ao console, caso contrário ele também deixaria de funcionar. O público se sentiu violado e prejudicado com todas essas medidas, que praticamente acabavam com a cultura gamer com que estamos acostumados. A Microsoft ainda levou um golpe de misericórdia da Sony, que fez questão de enfatizar que o PlayStation 4 não teria nenhuma dessas restrições, seria mais poderoso e ainda custaria cem dólares a menos, já que não havia um Kinect para aumentar seu preço.
Oportunista. a Sony fez questão de enfatizar que o DRM era invenção da concorrência
Todos esses erros fizeram com que a Microsoft conseguisse destruir a excelente imagem que havia criado com o Xbox 360, tornando o seu Xbox One um fracasso antes mesmo do seu lançamento, que ocorreu em 23 países no dia 22 de novembro do ano passado. Mas a empresa fez algo que poucos esperavam, e está aos poucos conseguindo reverter o caos que ela mesma conseguiu criar em volta de seu console.

Os passos da redenção

Com a tamanha falta de aceitação do público quanto ao Xbox One, a Microsoft não assistiu a sua própria desgraça esperando que algum milagre acontecesse. Logo após a E3, a empresa foi retirando cada uma das restrições que havia imposto ao seu sistema, o que fez com que muitos torcessem menor o nariz para o videogame, que apesar de tudo possuía uma boa line-up de lançamento. A retirada das restrições como DRM e a constante necessidade de estar conectado à internet não foram o bastante, já que o marketing do console já estava completamente afetado e o PlayStation 4 era claramente o console mais desejado da nova geração, mas a Microsoft não desistiu.
Com tantas críticas negativas, a Microsoft anunciou o fim das restrições em seu console
A empresa, que sempre soube angariar clientes para seus produtos, trabalhou em enormes campanhas de marketing enfatizando o fim das restrições além de mostrar o que o Kinect era capaz de fazer no sistema operacional que foi criado com foco total em sua utilização. No fim, o lançamento do sistema foi muito bom e, apesar de não ter superado o sucesso absoluto do PlayStation 4, conseguiu a excelente marca de um milhão de consoles vendidos apenas no primeiro dia do aparelho no mercado. Mas novos problemas ainda assombrariam a empresa em sua empreitada: o sistema operacional era lento e pouco intuitivo, forçando os jogadores a utilizar o Kinect se quisessem um pouco de agilidade. Infelizmente, o Kinect não funcionava bem como prometido e navegar pelo console se provou um imenso pesadelo. Além disso, funcionalidades básicas como o status de carga dos controles e o gerenciamento dos HDs do console não estavam disponíveis, dando a impressão que o console foi lançado às pressas e com um sistema operacional inacabado.
A cada nova atualização, uma ou mais funcionalidades são melhoradas
E foi aí que a Microsoft começou a reagir mais uma vez. Ouvindo todo o feedback do público, a empresa começou a trabalhar em updates mensais que além de melhorar a performance do sistema ainda adicionavam novas funcionalidades que tornavam o console um aparelho mais amigável para seus usuários. Atualmente, o console conta com diversas utilidades que não estavam presentes no lançamento e os updates continuam sendo anunciados. O próximo update, por exemplo, trará ao console a aguardada compatibilidade com HDs externos e a possibilidade de disponibilizar o seu nome real à sua lista de amigos, que antes só permitia que os jogadores se conhecessem via GamerTag. E a maior mudança não tem nada a ver com nenhum desses updates!

A tacada final

Na semana passada, a Microsoft surpreendeu a todos e anunciou um Xbox One que não virá embalado com um Kinect. O console, que passará a custar o mesmo preço do PlayStation 4, finalmente estará livre de uma de suas mais terríveis amarras: um periférico que quase ninguém desejava que havia sido imposto como parte do sistema. Com isso, a Microsoft não apenas está inaugurando uma nova era de seu console de mesa como também está mostrando como se deve fazer quando um conceito não é bem aceito no mercado.

A retirada do Kinect da caixa do console fez com que a empresa tivesse que repensar a interface do Xbox para que ele seja melhor utilizado sem ajuda do periférico, tornando o console mais acessível e capaz de atingir um público maior, já que muitos não estavam dispostos a pagar cem dólares a mais por uma câmera que para muitos pode mais atrapalhar do que ajudar. E o fim do Kinect como parte fundamental da experiência é também o movimento final para que a Microsoft consiga eliminar de vez a péssima imagem que criou há um ano durante o anúncio de seu console.

E o que podemos aprender com a Microsoft?

A indústria dos jogos é cheia de empresas orgulhosas que simplesmente se recusam a admitir que certas ideias ainda não estão maduras o suficiente para serem aceitas pelos consumidores e pelas desenvolvedoras. Esse orgulho faz com que essas empresas acabem perdendo muitas oportunidades e sejam encaradas como parte de um mercado e nicho onde poucos têm a coragem de investir. Quando iniciou o desenvolvimento de seu console, a Microsoft acreditou em um conceito que permeou toda a sua criação. Apesar dos esforços, em pouco tempo o conceito se provou falho, de maneira que tanto os jogadores quanto as desenvolvedoras acabaram não o abraçando.

Com o constante agravamento da situação, a empresa foi humilde o bastante para admitir que os conceitos que cercavam seu novo hardware estavam longe de ser o que todos esperavam e desejavam e começou a trabalhar ao lado de seus parceiros e consumidores para entregar um produto que realmente agradasse a um maior número de pessoas. Como resultado, o Xbox One já é melhor visto por gamers de todo o mundo, que agora realmente têm dúvidas se devem comprar um PlayStation 4 ou um Xbox One, já que o preço é o mesmo e cada um deles tem jogos e conceitos que podem agradar a gregos e troianos.
As vendas do Xbox One sucumbiram perante seus concorrentes. Vendas mundiais até 17/05/2014. Fonte: VGChartz
Em um mercado em constante transformação e a eterna necessidade de inovação, a Microsoft acertou duas vezes: a primeira por tentar trazer algo novo para os jogadores e a segunda por admitir que aquilo estava longe de ser o que todos desejavam no momento e voltar atrás para que seu produto se tornasse mais atrativo. Isso significa que os jogos nunca serão controlados por voz? De maneira nenhuma! O Kinect pode ser o início de uma nova era nos jogos que pode acabar se mostrando uma tendência nas próximas gerações, mas atualmente não é o que a indústria deseja.
O Virtual Boy foi um dos maiores fracassos da história dos videogames, mas a coragem da Nintendo em tentar inovar foi louvável
O fracasso do Virtual Boy não impediu o sucesso estrondoso do 3DS e muito menos o desenvolvimento de óculos de realidade virtual como o Oculus Rift e o Project Morpheus, assim como a falta de interesse do público e das desenvolvedoras pelo GamePad do Wii U não fazem com que o controle seja uma grande porcaria. A indústria de jogos não é das mais previsíveis, e o que hoje pode parecer ridículo pode ser tendência em alguns anos, assim como o que ontem parecia ser o futuro não faça mais sentido nos dias de hoje. A inovação é necessária, e todas as empresas que se arriscam estão de parabéns por tentarem elevar tudo a um novo patamar. Mas melhor ainda são as que, além de tentar inovar, são capazes de perceber a hora de admitir que algo não saiu como o planejado e ter a humildade de criar experiências realmente desejadas pelo público e desenvolvedoras no momento. E mesmo com tantos erros, a Microsoft soube fazer isso como poucas.

Revisão: José Carlos Alves
Capa: Douglas Fernandes

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