Muito se fala sobre todos os deslizes da Microsoft desde o conturbado anúncio do Xbox One. Jogos atrelados a consoles, um videogame que, para funcionar, deve estar conectado à internet o tempo todo e um Kinect que deixava de ser um mero acessório para jogadores casuais e passava a ser a base de um sistema operacional confuso e pouco funcional. Contudo, pouco vem se falando quanto à forma com que a empresa americana vem reagindo a todas as críticas. A indústria dos jogos eletrônicos tem como um de seus principais pilares a inovação, e nenhuma delas está isenta da possibilidade de falhar miseravelmente e não agradar o público alvo. Aconteceu com o Virtual Boy, console mais falho já lançado pela Nintendo; com o Game Gear, portátil da Sega que não chegou nem a tocar as unhas dos pés do Game Boy, da Nintendo; com o controle bumerangue do PlayStation 3 (alguém se lembra dele?) e com diversos outros produtos de empresas que tentaram trazer algo diferente para a indústria.
A Microsoft teve sua chance. A mais recente gigante da indústria sempre aspirou por um sistema que fosse capaz de ser uma central multimídia e tentou avançar lentamente em sua meta com o Xbox e o Xbox 360. Com o Xbox One a empresa tentou levar tudo a um novo patamar, e isso é admirável, mesmo que vários dos conceitos tenham se provado falhos com o tempo. Mas não é sobre a central multimídia e tampouco sobre as inovações que estou tentando discutir, e sim sobre a forma com que a empresa soube lidar com todas as críticas que recebeu desde o início do ano passado.
Uma breve retrospectiva
Anunciado há exatamente um ano e um dia, o novo console da Microsoft se tornou rapidamente uma grande piada em toda a comunidade gamer. Sem jogos ou qualquer coisa que lembrasse um videogame, o console mais parecia um decoder de TV a cabo com cara de videocassete do que qualquer outra coisa. O novo e desajeitado console da Microsoft seria controlado por voz e seria capaz de realizar grandes firulas, como reconhecer os usuários toda vez que eles chegassem perto do aparelho e atender a qualquer comando de voz que envolvesse os aparelhos de sua sala. Diversos aplicativos relacionados a televisão foram anunciados e até séries exclusivas para o console já estavam em desenvolvimento.
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Era o anúncio de um console, mas parecia o evento da nova programação da Rede Globo |
Quando a apresentação terminou, restou nos jogadores apenas o gosto amargo da decepção. Sem jogos anunciados (exceto por um nada surpreendente Call of Duty com cachorros), e um foco total em aplicativos de televisão, diversas montagens começaram a pipocar pela internet e o que deveria ser uma grande revelação se tornou apenas uma grande piada.
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Eis o grande mascote da apresentação (NOT) |
Com a E3 se aproximando, os jogadores começaram a se perguntar que chances teria a Microsoft com seu console, já que o PlayStation 4 já mostrava sinais de uma line-up forte enquanto no Xbox One, até então, poderíamos apenas assistir programas de TV e jogar Call of Duty. A feira até foi animadora em certo ponto: com uma line-up poderosa, que incluía
Killer Instinct,
Dead Rising 3,
Forza Motorsport 5 e
Titanfall, a empresa conseguiu provar ao mundo que seu console seria capaz de brigar de igual para igual com seu concorrente. Ou quase conseguiu.
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Killer Instinct foi uma grata surpresa para os mais céticos quanto ao novo console da Microsoft |
O anúncio da line-up do Xbox One teria sido incrível se não fossem pelas políticas extremamente restritivas que a empresa estava impondo aos jogadores: o DRM dos jogos acabaria de vez com o comércio de jogos usados e o console deveria estar conectado o tempo todo à internet para funcionar. Além disso, o Kinect deveria ficar conecatado o tempo todo ao console, caso contrário ele também deixaria de funcionar. O público se sentiu violado e prejudicado com todas essas medidas, que praticamente acabavam com a cultura gamer com que estamos acostumados. A Microsoft ainda levou um golpe de misericórdia da Sony, que fez questão de enfatizar que o PlayStation 4 não teria nenhuma dessas restrições, seria mais poderoso e ainda custaria cem dólares a menos, já que não havia um Kinect para aumentar seu preço.
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Oportunista. a Sony fez questão de enfatizar que o DRM era invenção da concorrência |
Todos esses erros fizeram com que a Microsoft conseguisse destruir a excelente imagem que havia criado com o Xbox 360, tornando o seu Xbox One um fracasso antes mesmo do seu lançamento, que ocorreu em 23 países no dia 22 de novembro do ano passado. Mas a empresa fez algo que poucos esperavam, e está aos poucos conseguindo reverter o caos que ela mesma conseguiu criar em volta de seu console.
Os passos da redenção
Com a tamanha falta de aceitação do público quanto ao Xbox One, a Microsoft não assistiu a sua própria desgraça esperando que algum milagre acontecesse. Logo após a E3, a empresa foi retirando cada uma das restrições que havia imposto ao seu sistema, o que fez com que muitos torcessem menor o nariz para o videogame, que apesar de tudo possuía uma boa line-up de lançamento. A retirada das restrições como DRM e a constante necessidade de estar conectado à internet não foram o bastante, já que o marketing do console já estava completamente afetado e o PlayStation 4 era claramente o console mais desejado da nova geração, mas a Microsoft não desistiu.
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Com tantas críticas negativas, a Microsoft anunciou o fim das restrições em seu console |
A empresa, que sempre soube angariar clientes para seus produtos, trabalhou em enormes campanhas de marketing enfatizando o fim das restrições além de mostrar o que o Kinect era capaz de fazer no sistema operacional que foi criado com foco total em sua utilização. No fim, o lançamento do sistema foi muito bom e, apesar de não ter superado o sucesso absoluto do PlayStation 4, conseguiu a excelente marca de um milhão de consoles vendidos apenas no primeiro dia do aparelho no mercado. Mas novos problemas ainda assombrariam a empresa em sua empreitada: o sistema operacional era lento e pouco intuitivo, forçando os jogadores a utilizar o Kinect se quisessem um pouco de agilidade. Infelizmente, o Kinect não funcionava bem como prometido e navegar pelo console se provou um imenso pesadelo. Além disso, funcionalidades básicas como o status de carga dos controles e o gerenciamento dos HDs do console não estavam disponíveis, dando a impressão que o console foi lançado às pressas e com um sistema operacional inacabado.
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A cada nova atualização, uma ou mais funcionalidades são melhoradas |
E foi aí que a Microsoft começou a reagir mais uma vez. Ouvindo todo o feedback do público, a empresa começou a trabalhar em updates mensais que além de melhorar a performance do sistema ainda adicionavam novas funcionalidades que tornavam o console um aparelho mais amigável para seus usuários. Atualmente, o console conta com diversas utilidades que não estavam presentes no lançamento e os updates continuam sendo anunciados. O próximo update, por exemplo, trará ao console a aguardada compatibilidade com HDs externos e a possibilidade de disponibilizar o seu nome real à sua lista de amigos, que antes só permitia que os jogadores se conhecessem via GamerTag. E a maior mudança não tem nada a ver com nenhum desses updates!
A tacada final
Na semana passada, a Microsoft surpreendeu a todos e anunciou um Xbox One que não virá embalado com um Kinect. O console, que passará a custar o mesmo preço do PlayStation 4, finalmente estará livre de uma de suas mais terríveis amarras: um periférico que quase ninguém desejava que havia sido imposto como parte do sistema. Com isso, a Microsoft não apenas está inaugurando uma nova era de seu console de mesa como também está mostrando como se deve fazer quando um conceito não é bem aceito no mercado.
A retirada do Kinect da caixa do console fez com que a empresa tivesse que repensar a interface do Xbox para que ele seja melhor utilizado sem ajuda do periférico, tornando o console mais acessível e capaz de atingir um público maior, já que muitos não estavam dispostos a pagar cem dólares a mais por uma câmera que para muitos pode mais atrapalhar do que ajudar. E o fim do Kinect como parte fundamental da experiência é também o movimento final para que a Microsoft consiga eliminar de vez a péssima imagem que criou há um ano durante o anúncio de seu console.
E o que podemos aprender com a Microsoft?
A indústria dos jogos é cheia de empresas orgulhosas que simplesmente se recusam a admitir que certas ideias ainda não estão maduras o suficiente para serem aceitas pelos consumidores e pelas desenvolvedoras. Esse orgulho faz com que essas empresas acabem perdendo muitas oportunidades e sejam encaradas como parte de um mercado e nicho onde poucos têm a coragem de investir. Quando iniciou o desenvolvimento de seu console, a Microsoft acreditou em um conceito que permeou toda a sua criação. Apesar dos esforços, em pouco tempo o conceito se provou falho, de maneira que tanto os jogadores quanto as desenvolvedoras acabaram não o abraçando.
Com o constante agravamento da situação, a empresa foi humilde o bastante para admitir que os conceitos que cercavam seu novo hardware estavam longe de ser o que todos esperavam e desejavam e começou a trabalhar ao lado de seus parceiros e consumidores para entregar um produto que realmente agradasse a um maior número de pessoas. Como resultado, o Xbox One já é melhor visto por gamers de todo o mundo, que agora realmente têm dúvidas se devem comprar um PlayStation 4 ou um Xbox One, já que o preço é o mesmo e cada um deles tem jogos e conceitos que podem agradar a gregos e troianos.
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As vendas do Xbox One sucumbiram perante seus concorrentes. Vendas mundiais até 17/05/2014. Fonte: VGChartz |
Em um mercado em constante transformação e a eterna necessidade de inovação, a Microsoft acertou duas vezes: a primeira por tentar trazer algo novo para os jogadores e a segunda por admitir que aquilo estava longe de ser o que todos desejavam no momento e voltar atrás para que seu produto se tornasse mais atrativo. Isso significa que os jogos nunca serão controlados por voz? De maneira nenhuma! O Kinect pode ser o início de uma nova era nos jogos que pode acabar se mostrando uma tendência nas próximas gerações, mas atualmente não é o que a indústria deseja.
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O Virtual Boy foi um dos maiores fracassos da história dos videogames, mas a coragem da Nintendo em tentar inovar foi louvável |
O fracasso do Virtual Boy não impediu o sucesso estrondoso do 3DS e muito menos o desenvolvimento de óculos de realidade virtual como o Oculus Rift e o Project Morpheus, assim como a falta de interesse do público e das desenvolvedoras pelo GamePad do Wii U não fazem com que o controle seja uma grande porcaria. A indústria de jogos não é das mais previsíveis, e o que hoje pode parecer ridículo pode ser tendência em alguns anos, assim como o que ontem parecia ser o futuro não faça mais sentido nos dias de hoje. A inovação é necessária, e todas as empresas que se arriscam estão de parabéns por tentarem elevar tudo a um novo patamar. Mas melhor ainda são as que, além de tentar inovar, são capazes de perceber a hora de admitir que algo não saiu como o planejado e ter a humildade de criar experiências realmente desejadas pelo público e desenvolvedoras no momento. E mesmo com tantos erros, a Microsoft soube fazer isso como poucas.
Revisão: José Carlos Alves
Capa: Douglas Fernandes