Analógico

Estereótipos e preconceitos: os jogos quebrando paradigmas

Entenda como funcionam os estereótipos, paradigmas e como os jogos podem ajudar a criar uma geração de pessoas melhores quebrando velhos preconceitos.

Jogos são excelentes criadores de estereótipos e arquétipos. Temos o cavaleiro branco que sempre protege o seu grupo e o mago negro que conjura magias sinistras contra os heróis. O grandão malvado, o barbudo sábio, preto e branco são bem delimitados pelo que cada personagem deve ser. Esses estereótipos por muitas vezes ajudam na concepção de papéis, mas isso pode formar barreiras mentais para o verdadeiro potencial destas imagens. A partir daí é criado um conceito antes de seu entendimento - ou preconceito - o que muitas vezes pode ser um problema.




É natural ter preconceitos porque eles já fazem parte da sociedade, somos ensinados desde jovens a julgar o livro pela capa e sempre se atentar para detalhes físicos que podem indicar os padrões de personalidade e caráter de alguém. Enquanto é um método válido de precaução, essas rédeas podem ocultar um lado que deixamos de ver pela mente fechada, incapazes de enxergar além do véu do estereótipo e assumindo que todos daquele “padrão” são iguais. Como parte da mídia, os jogos também têm seu histórico com estereótipos, bons e ruins. O lado ruim é que eles muitas vezes reforçam o preconceito. O bom é que eles podem quebrar isso.

O conceito do preconceito

Um dos instintos básicos do ser humano é o de se previnir tendo como base a experiência. Quando se sabe que uma rua possui um cachorro da raça Pit Bull que você viu atacando alguém, você evita passar ali para se preservar. Contudo, se evitar a rua porque nela existe um Pit Bull e você teme ser atacado, estará associando a raça do cão à violência baseado em histórias que outros contaram. Isso é um preconceito, é julgar algo a partir de uma experiência que você não tem, ou se baseando em paradigmas da sociedade.
Sempre foi assim: o autor do famigerado livro O Monge e o Executivo, James C. Hunter, explica o conceito de paradigma com um exemplo de cinco macacos em um laboratório. No centro da sala existe uma escada que vai até um cacho de bananas, mas quando um dos símios tenta subir a escada, todos os restantes recebem um jato d’água. Novamente o macaco sobe, os outros recebem a água. Na terceira vez, os macacos não deixam que ele suba, o espancando por causar o que houve com todos os outros.

Depois disso, um dos cinco macacos é removido e colocam um novo, e este imediatamente vai até a escada, sendo golpeado pelos companheiros de sala sem nem saber o motivo. Removendo um a um, chega um ponto em que os cinco macacos que estão ali são completamente novos e nunca foram molhados, mas espancam qualquer símio que tente subir as escadas. Se eles soubessem falar e fossem questionados o porquê de fazerem isso, responderiam: “Nós não sabemos, mas sempre foi assim por aqui”. Isso é um paradigma, um padrão a ser seguido, um conceito já impregnado no senso comum de uma sociedade.
Esses paradigmas acabam criando imagens pré-formadas de determinadas situações, classes sociais e pessoas, os chamados estereótipos. Por serem paradigmas, são baseados em experiências que nunca tivemos e assumimos que acontecem porque “sempre foi assim”. É daí que tiramos alguns clássicos do cinema americano, como os policiais amantes de rosquinhas e o garoto bom nos esportes que dá uma de valentão em cima dos colegas.

Por mais que você seja uma pessoa livre de preconceitos, é natural que tenha alguns estereótipos previamente instalados em sua mente, e isso porque todos fomos doutrinados por anos com a mídia martelando esses personagens em nossa cultura. Como brasileiros, é comum que muitos associem a raça negra à pobreza, ao vandalismo e a vida criminosa, assim como a homossexualidade à promiscuidade, aos exageros e ao chamativo.

Desafio: procure caucasianos nas favelas em Max Payne 3.
Essa falha grave da sociedade, de associar determinados perfis de pessoas a uma série de parâmetros psicológicos e sociais, já está enraizada com certa firmeza através dos anos graças a uma mídia que se alimenta dos estereótipos, seja pelo humorismo usando isso como piada ou ao próprio preconceito que se firma por alguns exemplos marcantes. Os jogos também pertencem à mídia e se envolvem constantemente com estereótipos, fixando e quebrando preconceitos, mas qual lado tem se destacado? Estamos no caminho certo para criar uma geração menos preconceituosa?

Humor negro

O escritor da série Far Cry, Lucien Soulban, disse em uma entrevista que não veremos protagonistas homossexuais tão cedo no mundo dos jogos, pelo simples fato de que não só temos fãs que poderiam se sentir desconfortáveis com isso como também faltam escritores que saibam colocar personagens assim num jogo sem transformá-los em piada completa, justamente pelo estereótipo libertino que os homossexuais possuem.

Parece o perfil de um
homossexual?
Contudo, já existem jogos que abordam a homossexualidade por uma visão menos conservadora, como é o caso da série Mass Effect permitindo que o protagonista torne-se homossexual de acordo com as decisões do jogador. Há também o casamento gay em The Elder Scrolls V: Skyrim e personagens do gênero em Borderlands II que não precisam de nenhum anúncio, apenas estão ali. É uma forma dos jogos dizerem “homossexualidade é normal, eles estão em todo lugar e não precisam de um holofote”.
Nintendo conservadora?: Neste mesmo tópico, temos a recente polêmica da Nintendo e a união homoafetiva em Tomodachi Life. Alguns podem dizer que é o mesmo caso dos exemplos acima, mas não é bem assim por um único motivo em específico: classificação indicativa. Enquanto os jogos supracitados possuem classificação entre 14 e 18 anos, Tomodachi Life é Livre, tem como um dos públicos-alvos as crianças, e é sempre complicado deixar pequenas mentes no alcance desse tipo de informação sem supervisão. Não é hipocrisia, apenas acredito que sexualidade seja um tema a ser abordado com a orientação dos pais, seja hetero ou homossexual.

Também deve-se levar em consideração que a função do casamento entre Mii’s do mesmo sexo nunca foi intencional e sim um exploit, um bug identificado por jogadores japoneses. Independente dos efeitos pró-minorias que esse erro pudesse ter, a Nintendo está mais do que no direito de reparar o bug por não saber outras consequências que este pode causar no game. Ainda assim, a Big N afirmou que em um futuro jogo, serão mais inclusivos com as minorias.
O pior é que o preconceito está tão fundo em nossa cultura que muitas vezes o possuímos mesmo sem manifestar intencionalmente. Um estudo elaborado na Universidade Estadual de Ohio colocou um grupo de pessoas de diferentes etnias e gêneros para jogar (Saints Row II e WWE Smackdown vs. Raw 2010) com personagens caucasianos e negros, e apontou que as pessoas que jogavam com negros eram propícias a ter uma atitude racista, associando negros à violência. Isso apenas comprova o quão marcados estamos por preconceitos que nem imaginamos possuir, e o quanto é longo o caminho que temos até romper certos paradigmas.

Contudo, a indústria gamer pode já estar na trilha correta.

Rasgando o véu

Como dissemos, existem jogos que já trabalham em quebrar esses estereótipos que permeiam a mídia. Um dos que mais associaram negros à violência, Grand Theft Auto hoje em dia parece caminhar na direção oposta, mostrando diversos lados da mesma situação e saindo da zona de conforto dos “personagens fáceis”, estereotipados e facilmente aceitos.

Logo na imagem dá pra sentir a mudança.
A complexidade está na dificuldade de quem é “normal” aceitar o que é fora do padrão, pois foge às regras. É natural da psique humana rejeitar aquilo que sai da sua zona de conforto, mudanças assustam e tememos o desconhecido. Parece ser mais fácil aceitar uma imagem mental pronta do que explorar e conhecer aquilo por nós mesmos, mas é graças às pessoas que são ousadas o suficiente para desbravar o diferente que a humanidade continua progredindo.

Jade Reymond, chefe da Ubisoft Toronto, afirmou em uma entrevista seu descontentamento com a excessiva estereotipagem da indústria gamer atual. “Não gosto da suposição de que todos que jogam games queiram motosserras e mulheres em biquinis”, disse ela, coberta de razão. É graças ao inusitado que temos uma constante progressão desse meio, com personagens cada vez mais profundos, intensos e menos definidos apenas por aspectos físicos.

A surpresa de
 uma geração.
Como exemplo temos uma das maiores musas da Nintendo, Samus Aran. Todos os jogadores de Metroid de sua época se surpreenderam ao concluir o jogo e constatar que por baixo daquela armadura havia uma mulher. E se soubessem desde o início que ela era uma moça, teria o jogo o mesmo impacto? Aquela mensagem de “uma mulher pode fazer o mesmo que um homem sem nenhuma diferença” é um soco direto no preconceito: só tememos o desconhecido porque não sabemos que ele é igual ao que já conhecemos.

Uma das metáforas mais simples para explicar nosso medo do que não conhecemos é o temor do escuridão, mas mesmo isso pode ser desbancado. Se você se trancar em um quarto sem nenhuma luz, não vai ver nada. Contudo, conforme passa o tempo, seus olhos se habituam à baixa luminosidade e você começa a ver silhuetas, depois formas e, por fim, consegue enxergar praticamente de maneira normal - e constatar que tudo continua igual ao que era quando a luz estava acesa. Não há o que temer, a não ser que você tenha medo de constatar que o desconhecido pode ser muito mais parecido contigo do que imagina.

Uma longa estrada

Ainda vai demorar um pouco para quebrar certos paradigmas, estereótipos e preconceitos, pois já estão marcados na nossa cultura há muito tempo. Todavia, quaisquer pequenas mudanças na mídia influenciam no rumo que a sociedade vai tomar, pois somos muito mais dependentes dela do que pensamos. Quantos de vocês sabem inglês por causa de jogos? Quantos desenvolveram paixão pelo fantasioso, a leitura ou escrita? Aprendemos muito mais com nossa vida gamer do que podem imaginar.


Se cada geração agregar mais conteúdo útil aos jogos, as crianças do amanhã têm somente a ganhar. A quebra de dogmas incoerentes e muitas vezes infundados pode criar pessoas mais tolerantes, pacientes e que saibam respeitar o próximo, conhecendo-o antes de julgar. Tirar as rédeas dos velhos ensinamentos pode ser uma boa, explorar o desconhecido ainda mais, mas sempre com cautela. Por que não tentar entender o lado do próximo? Só porque disseram que ele age de uma determinada forma?

Se são as perguntas que movem o mundo, por que se contentar com respostas tão simples?
Revisão: Bruna Lima
Capa: Vitor Nascimento

Escreve para o GameBlast sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0. Você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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