Sadismo ou entretenimento: qual o limite politicamente correto para os jogos?

em 01/02/2014

Desde seu surgimento, na década de 50, o mundo dos games por muito tempo foi encarado como hobby saudável. De Pacman até Super Mario , a... (por Unknown em 01/02/2014, via GameBlast)


Desde seu surgimento, na década de 50, o mundo dos games por muito tempo foi encarado como hobby saudável. De Pacman até Super Mario, a regra do jogo era criar uma mascote bacana para servir como avatar ao jogador na concretização de pequenos objetivos: fugir de fantasmas, salvar princesas, etc. Contudo, com a evolução da indústria e o envelhecimento do público-alvo consumidor, mais e mais as desenvolvedoras se habituaram a criar títulos complexos, abordando assuntos controversos, muitas vezes de forma moralmente questionável. Certo ou errado, o fato é que podemos dizer: há muito se perdeu a inocência dos games.

Apenas diversão?

Analisando de modo resumido a teoria dos jogos: jogo é qualquer ação delimitada por regras e objetivos que tenha como prioridade o entretenimento. Traduzindo: pular amarelinha tem regras (só se mover pulando), objetivo (chegar ao final do trajeto) e serve apenas como passatempo. Neste aspecto, pode-se alegar que qualquer título se justifica pela diversão dada ao jogador, independente de trazer alguma ideia de moral envolvida.

Contudo, extrapolando os limites dos games, a indústria cinematográfica se apoia em um conceito muito semelhante para suas produções. A grosso modo, filmes, no sentido hollywoodiano, têm como finalidade apenas o entretenimento da plateia. É tudo um espetáculo e aquelas cenas maravilhosas, efeitos de luzes e atuações magníficas servem apenas para te fazer passar o tempo.
É tudo um passatempo.
Neste mesmo paralelo podemos nos perguntar: se filmes que apresentam cenas de violência extrema ou até real já são considerados de mau gosto, às vezes criminosos, por ir além do necessário somente para chocar o espectador, por que, como jogadores, tentamos defender títulos que também se utilizam de elementos controversos apenas pela polêmica?

O perigo das influências

Já comentamos em outro artigo sobre o poder de fascínio dos jogos sobre as pessoas, e ao mesmo tempo a ameaça que é a imprevisibilidade dessas influências nas crianças em geral. Enquanto algumas compreendem tudo como mera situação do jogo, outras podem realmente se imprimir em um personagem, uma cena, e transportar os mesmos comportamentos para a vida real.

Selo indica a faixa etária
Para conter este tipo de situação, todos os produtos de entretenimento passam por órgãos de regulação de faixa etária. Na hora de avaliar um determinado produto são consideradas diversas características como nível de realismo na violência, existência de sangue, palavreado, cenas picantes e outros elementos que não são considerados adequados para algumas faixas etárias. Felizmente, muitas das grandes mascotes fogem de todos esses elementos, restando para Mario, por exemplo, apenas pular sobre a cabeça de seus inimigos.

Ainda assim, é inevitável que, apesar de todo esforço dos órgãos de regulamentação, somente uma minoria dos jogadores (e seus responsáveis) obedeçam a classificação de cada game. Ver crianças de oito, nove anos jogando Call of Duty, Bully, GTA e outras obras que trazem cenas um tanto quanto questionáveis é comum, inclusive acompanhadas pelos próprios pais. Também pudera, nós consideramos esses títulos adequados para nós. Mas será que sabemos da influência que eles terão sobre nossos irmãos ou filhos?

O limite do aceitável

Falando de modo pessoal agora, eu sou da seguinte opinião. Essa cena é realmente necessária? A nível de narrativa ou jogabilidade? Serve ela como pivô para algum evento ou ela está lá apenas pela controvérsia provocada? Neste sentido existe uma distinção bem clara entre elementos justificáveis e polêmicos.


Podemos começar citando a lendária cena de Call of Duty Modern Warfare 2, a chacina no aeroporto. Seria realmente necessário colocar o jogador naquela situação? Ainda que a nível de história o desfecho do evento seja um dos pontos mais marcantes do game, eu sinceramente acredito que a passagem é dispensável. Colocar o jogador armado atirando gratuitamente em pessoas no aeroporto foge de qualquer justificativa do jogo. Existe um objetivo? Nenhum, apenas matar pessoas. Existem regras? Nenhuma, você só precisa andar e atirar. Existe um desafio? Nenhum. Em resumo, é uma situação que se fosse apresentada por imagens teria o mesmo impacto. E pior, como jogador, a construção da cena é tão fraca que você nem sente estar fazendo algo ruim.

Como segundo exemplo, vale citar é o último Duke Nukem. Sou fã de Duke desde o antigo Duke Nukem 3D, acredito que a franquia sempre capturou o que havia de melhor nos shooters dos anos 90 ao mesmo tempo em que servia como crítica para todos os outros protagonistas da indústria de games. O problema chegou na mais recente encarnação da série. Em Duke Nukem Forever foi abandonado qualquer senso de bom gosto: o machismo (uma das maiores sátiras na série) extrapolou para níveis de sexismo nunca vistos em um jogo digital. Ao mesmo tempo, Duke tornou-se vítima daquilo que sempre ironizou: títulos genéricos. Em resumo, toda essência e significado do protagonista se perderam pelo jogo, fazendo das piadas fracas, desconexas e gratuitas.

Pode isso, produção?
Por outro lado, devemos mencionar GTA e Sleeping Dogs como bons exemplos de ambientação. GTA nunca escondeu do jogador que este é um criminoso, nem se conteve de fazer o jogador praticar maus atos, e ainda assim consegue trazer uma inocência quase pueril em seus personagens. É o tráfico de drogas visto como uma negociação entre bandidos, o roubar carros como ação corriqueira, a fuga de policiais como aventura. Parece ruim? Parece, mas não é tanto por um simples motivo: não há engrandecimento dessas ações.

Traduzindo: ainda que você pegue garotas de rua, roube carros e faça outras três mil traquinagens, nada disso é superestimado. São situações presentes, quase corriqueiras, parte fundamental da premissa mais básica do jogo. Nenhuma delas em nenhum momento está ali apenas pela polêmica, pra chocar; elas são parte da experiência, o que transforma GTA em uma simples fantasia de polícia e ladrão virtual. Mesmo GTA V, que tenta ser mais cinematográfico, se contém e evitanda grandes excessos.

Quando a criminalidade é justa e a justiça é criminosa.
De modo análogo, mas do outro lado da moeda, em Sleeping Dogs, Wei Shen é um policial infiltrado na máfia chinesa. O peso de todas as ações se reflete diretamente na vida de Wei, todos os questionamentos morais sobre justiça, igualdade, corrupção, tudo completamente justificado e relativizado. Quais são os limites da lei? O que leva as pessoas à criminalidade? Sleeping Dogs usa as experiências para levar reflexões reais ao jogador. Nenhuma cena de violência é gratuita, e acho que este é o cerne da questão.

Politicamente necessário?

Sinceramente, não sei se existe de fato uma resposta para essa consideração. Acredito que, assim como piadas se constroem sobre inversão de valores (afinal, falar do português inteligente nunca teve nenhuma graça), algumas experiências de jogos, ou mesmo de arte e filosofia, só são possíveis com a subversão de determinados valores, mas é preciso que esta seja justificada por algo mais que a mera polêmica do ato. Para mim, o limite da questão está na seguinte pergunta: essa cena é realmente necessária?

Eu fico por aqui, agora é sua vez amigo leitor: quais os limites da moral para a indústria de jogos?

Revisão: Bruna Lima
Capa: Douglas Fernandes

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