Análise: Katawa Shoujo (PC)

em 02/02/2013

A internet é uma coisa incrível. Ela permite, por exemplo, realizar videoconferências com familiares do outro lado do mundo, reduzindo a s... (por Vitor Navarrete em 02/02/2013, via GameBlast)

A internet é uma coisa incrível. Ela permite, por exemplo, realizar videoconferências com familiares do outro lado do mundo, reduzindo a sensação de distância física. Ela também possibilita a interação de desconhecidos provenientes de toda parte do globo. Os redatores do GameBlast, por exemplo, estão espalhados por todo Brasil. Em uma outra dessas interações que a internet permite, um grupo de usuários do site 4chan, baseados em uma arte conceitual, decidiu criar uma Visual Novel sobre garotas com deficiências, intitulada Katawa Shoujo. Spoilers: o resultado é apaixonante.

O início de tudo

Para quem não conhece, o 4chan é um dos imageboards (tipo de fórum de discussão onde os usuários postam imagens e textos, mantendo o anonimato) mais famosos da internet. Ele se divide em diversos subfóruns, como o /v/ sobre videogames ou o /b/ sobre assuntos aleatórios.

Foi em um desses subfóruns, mais precisamente no /a/ sobre anime e mangá, que essa história começou. Em 2007, um usuário postou uma página dos extras de um doujin (mangá com publicação independente) do artista Raita. Tais páginas são comumente utilizadas para rascunhos e esboços sobre ideias variadas dos autores. E era exatamente uma ideia aleatória que Raita tinha rascunhado, o esboço de um Date Sim (jogo de simulação de relacionamentos) em que as protagonistas seriam garotas do colegial com deficiência, intitulado Katawa Shoujo.

O princípio de tudo (traduzido do original japonês para o inglês).
Os usuários do 4chan se empolgaram verdadeiramente com a possibilidade de criar um jogo baseado unicamente nessa imagem conceitual. Após uma enorme tempestade de ideias, fóruns para o desenvolvimento do jogo foram criados, ainda no mesmo ano. Os usuários mais ativos acabaram tomando a dianteira do projeto, até mesmo pela necessidade de coordenar tantas pessoas e ideias, e foi assim que surgiu o Four Leaf Studios, uma entidade separada do 4chan, mas que não nega suas origens. Four Leaf (Quatro Folhas) é uma clara referência ao símbolo do 4chan.

Símbolo do 4chan.
Em 2009, a equipe conseguiu lançar a primeira versão do jogo, que consistia no prólogo e no primeiro ato. Finalmente, em 2012, após cinco anos de desenvolvimento, o time de desenvolvedores amadores conseguiu lançar o jogo completo, que, além dos acontecimentos da versão inicial, possui cinco caminhos alternativos após o primeiro ato, um para cada uma das protagonistas, inicialmente imaginadas por Raita, em seu doujin lançado em 2000.

A única grande mudança do esboço original é que, ao invés de um Date Sim, Katawa Shoujo é uma Visual Novel. Existe uma certa confusão entre os dois estilos de jogos, principalmente quando a Visual Novel é sobre relacionamentos, mas Date Sim possuem diversas mecânicas para determinar o desenrolar dos relacionamentos, enquanto Katawa Shoujo, como qualquer Visual Novel, baseia-se apenas nas escolhas do jogador para determinar os rumos da história.


Introdução do jogo.

O problema com o termo 'Katawa'

Um dos maiores problemas e preconceitos que o jogo enfrenta não é devido a temática ou ao fato do jogo ter suas origens no 4chan. O maior problema do jogo está em seu título. O termo Katawa (片輪) tem uma conotação pejorativa, tanto que o termo não é utilizado há muito tempo na mídia japonesa e é extremamente indelicado utilizá-lo para se referir a uma pessoa. Uma tradução aproximada do título 'Katawa Shoujo' para o português seria 'Garotas Aleijadas' ou 'Garotas Inválidas', termos discriminatórios e que caíram em desuso há vários anos.

Mas, se o título é tão controverso, qual o motivo dos desenvolvedores utilizarem-no? Bem, a razão inicial é o fato de Raita ter chamado seu esboço de Katawa Shoujo, então o time apenas manteve o título original. Inicialmente, eles não possuíam ninguém na equipe com um bom conhecimento da língua japonesa, então as implicações de tal escolha passaram desapercebidas. Quando a equipe descobriu este fato, várias pessoas já conheciam o jogo pelo título original, uma mudança de nome faria apenas com que essas pessoas se referissem ao game como "o jogo que antes se chamava Katawa Shoujo". Dessa forma, eles optaram por manter o nome original, até para respeitar o esboço de Raita, e enfrentar as consequências de frente, dando muita explicação.

O protagonista de coração quebrado...

Hisao Nakai
Agora que já falamos como esse jogo tão improvável surgiu, vejamos se todos esses cinco anos de desenvolvimento valeram a pena. No papel do protagonista, temos Hisao Nakai, que no começo da história é um estudante mediano do terceiro ano, sem nenhuma característica marcante. Devido a certos acontecimentos, logo após o início do jogo vemos Hisao ter um ataque cardíaco. Após quase morrer, ele é submetido a diversas cirurgias para salvar sua vida e os médicos dão o diagnóstico. Arritmia cardíaca. Em razão de uma má formação de seu coração, Hisao vê toda a vida que ele conhecia escorrer pelo ralo, durante os meses que ele passa em recuperação no hospital.

Antes de sua alta, os médicos e seus pais tomam uma decisão. Para se adpatar a um novo estilo de vida, que Hisao deverá levar, caso queira chegar vivo até os vinte anos, os adultos decidem que ele não deve voltar para sua antiga escola. Ao invés disso, Hisao é transferido para a Escola de Ensino Médio Yamaku para crianças com deficiência. Yamaku conta com professores especialmente treinados, uma grande equipe médica e até mesmo um pequeno hospital, para atender aos seus diversos estudantes.
Remédios de Hisao.

O resto da história, ou boa parte dela, pelo menos, se passa em Yamaku. Hisao deve aprender a aceitar sua condição e a se acostumar com a nova rotina de pouco esforço físico e dezenas de remédios por dia. E são as escolhas do jogador que definirão se Hisao conseguirá aceitar seu problema cardíaco, encontrará amizades ou mesmo amor em sua nova vida.



... e as protagonistas

Dependendo das escolhas do jogador durante o primeiro ato, Hisao acabará despertando o interesse de alguma das garotas e também se interessará por ela. Confira um pouco das protagonistas e das relações de Hisao com elas:


Emi.
  • Emi Ibarazaki ― A estrela do clube de corrida ou, como ela chama a si mesma, "a coisa mais rápida em perna nenhuma". Emi teve suas pernas amputadas abaixo do joelho, quando mais nova, devido a um acidente de carro. Mas, como a teimosia é sua característica principal, ela não ia deixar que o ocorrido ficasse entre ela e sua paixão, as pistas de corrida. Assim, após o período de recuperação, em que teve que reaprender a andar, Emi arrumou próteses especiais e voltou a correr. O seu bom humor e vontade de viver são contagiantes e ajudarão Hisao a aceitar e aprender a lhe dar com sua condição e seus limites.


Hanako.
  • Hanako Ikezawa ― Hanako é uma garota extremamente tímida. Caso um desconhecido tente inciar uma conversa com ela, existem grandes chances de ela inventar uma desculpa e sair correndo na direção oposta. Parte dessa aversão social se deve a discriminação que sofreu por causa de suas cicatrizes. Provenientes de um incêndio em sua infância que, além das marcas, deixou-a orfã, Hanako acaba, inconscientemente, tentando esconder suas cicatrizes e a si mesma dos olhares alheios. Assim, quando não está acompanhada de sua única amiga, Lilly, Hanako passa boa parte do seu tempo lendo na biblioteca da escola. Outra grande paixão sua são os jogos, principalmente o Xadrez. São esses hobbies em comum que fazem com que Hisao consiga se aproximar dela e conhecer seu passado misterioso.

Lilly
  • Lilly Satou ―Lilly é a representante da classe 3-2. Extremamente maternal e cuidadosa, Lilly é a confiante líder de sua turma. Devido a sua família ter deixado o Japão, quando ainda era nova, Lilly acabou aprendendo a se virar sozinha muito cedo e a cuidar de sua irmã mais velha, Akira, que trabalha mais do que o saudável. Foram essas características que fizeram com que ela se aproximasse da reclusa Hanako, desenvolvendo uma relação similar a de mãe e filha. Cega desde o nascimento, Lilly prefere passar o seu tempo livre tomando chá, hábito herdado de sua mãe estrangeira, na companhia de seus amigos íntimos. E é tomando chá com Lilly e Hanako que Hisao se apaixona pelo carinho que Lilly tem por seus próximos.

    Rin.
  • Rin Tezuka ― Rin é a maior pintora do clube de artes de Yamaku. Em virtude de um defeito de nascimento e cirurgia subsequente, Rin não possui braços. Assim, ela utiliza seus pés e, ocasionalmente, sua boca para fazer suas pinturas e tarefas cotidianas. Suas obras, em sua maioria abstratas, são um excelente reflexo da sua mente. Quando conversa com as pessoas, Rin acaba falando todos os pensamentos abstratos e filosóficos que lhe vêm à cabeça, o que acaba deixando os ouvintes muito confusos. Etiqueta social também não é o seu forte e o fato de não se dar bem com as palavras não a ajuda nessa área. Ao tentar se aproximar de Rin, Hisao acaba cada vez mais sugado no turbilhão de pensamentos e ideais abstratas que povoam a sua mente.

Shizune.
  • Shizune Hakamichi ― Shizune, além de representante da classe 3-3, é a presidente do Conselho Estudantil de Yamaku. Sua força de vontade é tanta que ela poderia facilmente ser classificada como uma força da natureza. O seu hábito de levar qualquer tarefa, por menor que seja, a sério, junto com a mania de transformar tudo em uma competição, faz com que muitos estudantes tenham um pouco de medo dela. Mas, mesmo sendo um pouco manipuladora, Shizune é justa e sabe reconhecer um trabalho bem feito e recompensar seus subordinados. Devido a sua surdez, ela quase sempre é vista junto com Misha, que faz um excelente trabalho como tradutora da língua de sinais. Hisao acaba sendo atraído por tamanha força de liderança e se torna um membro do Conselho Estudantil.

    Misha.
  • Shiina "Misha" Mikado ― Misha é a alegria em forma de pessoa. Sempre feliz e falando pelos cotovelos, ela raramente se abala com alguma coisa. Sua risada característica funciona como um alarme, avisando de sua chegada. Misha foi estudar em Yamaku por causa de suas pretensões profissionais. Apesar de não possuir um caminho próprio, ela sempre está presente na história, já que senta ao lado de Hisao na classe 3-3. E, como ela e Shizune são inseparáveis e os únicos membros do Conselho Estudantil, caso o jogador tome o caminho da Shizune, acabará descobrindo muitos detalhes sobre a sua personalidade jovial.


Uma escola não convencional

Kenji.
Ao chegar em Yamaku, Hisao deve passar por duas adaptações diferentes, mas correlatas: aprender a cuidar de si mesmo, devido a sua condição cardíaca, e aprender a conviver com os seus colegas com deficiência. Ao contrário de Hisao, todos na escola convivem em harmonia (bem, com exceção de duas das protagonistas, mas isso é outra história). Ninguém pensa muito em suas próprias deficiências e nem nas dos colegas. Aliás, por que deveriam? Independente de qualquer coisa, todas as pessoas são diferentes e únicas. Nossa impressão digital existe para provar esse fato. Não que Hisao seja um cafajeste incompreensível que aponte o dedo na cara das pessoas, longe disso. Acontece que a maioria das sociedades não prepara seus membros para lhe dar com o diferente, apenas com o que ela elegeu como padrão.

Mutou.
Além das protagonistas, outras pessoas ajudam Hisao em sua adaptação ao novo ambiente. Bem, seu vizinho de quarto, Kenji Setou, não é exatamente alguém que você confiaria, na verdade. Kenji é uma sátira dos usuários do 4chan, ou mesmo, da internet como um todo. Ele só fala sobre conspirações, como o plano das feministas para dominar o mundo. Boa parte do tempo, ele fica em seu quarto planejando como se defender da invasão do exército feminista.

Enfermeiro.
Existem três funcionários do colégio que convivem quase diariamente com Hisao. Akio Mutou, o professor de ciências da turma de Hisao e que o incetiva em seus estudos de física. O Enfermeiro, que apesar de ótima pessoa e funcionário dedicado não consegue fazer uma piada engraçada. A bibliotecária Yuuko Shirakawa, que apesar de ser bem jovem e atrapalhada, acaba dando alguns dos melhores conselhos que ajudam o nossso protagonista a se encontrar.


Um terceiro ano inesperado

Assim como o ataque do coração que Hisao sofreu, o surgimento de Katawa Shoujo foi um acontecimento inesperado. Mas, ao contrário do primeiro caso,  podemos dizer que o jogo é um feliz acontecimento. Ele consegue ser emotivo e sincero, sem ser piegas ou apelar para a piedade. Os finais bons me deixaram feliz pelos personagens. Enquanto os finais ruins, um em específico, me deixaram realmente abalado. Passei um bom tempo para me recuperar emocionalmente desse caso específico.

Classe 3-3.

Como Katawa Shoujo é um jogo gratuito, eu recomendaria a todos que apreciam uma boa história com carga emocional. Ele pode ser baixado diretamente do site oficial. É bom lembrar que o jogo é classificado para maiores de 18 anos, mas é possível desativar o conteúdo adulto, caso o jogador prefira, nas configurações. Mas acreditem quando digo que esse não é o ponto do jogo. Katawa Shoujo é uma verdadeira experiência que, para alguns, pode representar uma mudança em sua vida. Eu, por exemplo, não consigo mais andar na rua sem pensar na dificuldade que pessoas com deficiência devem enfrentar ao se locomover em nossas calçadas irregulares. Isso foi apenas uma das coisas que eu ignorava, mas, após Katawa Shoujo, me tornei consciente.

Prós

  • Ótima história abordando um tema diferenciado;
  • Trilha sonora memorável;
  • Protagonistas para todos os gostos.

Contras

  • Alguns trechos da história parecem mais longos do que o necessário;
  • Prolongados momentos sem música;
  • Não uniformidade das artes. Algumas são fenomenais, enquanto outras parecem ter sido desenhadas às pressas.

Katawa Shoujo - PC - Nota: 9,0

Revisão: Catarine Aurora

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