Em meio a muitos lançamentos exclusivos de suas rivais nipônicas, a Microsoft tinha uma carta na manga que parecia simples, mas que se mostrou muito mais que o sonho realizado de dois irmãos canadenses após seu lançamento. Conheça Cuphead (PC/XBO) — o primeiro, mas incrível, jogo dos Studios MDHR — e permita-se viajar no tempo em uma árdua jornada run and gun que se inspira no passado dos anos 1930, mas que é muito mais presente e futuro do que você pode imaginar.
Apostando alto
Há muitos desenvolvedores de jogos indie que passam por maus bocados até o fim do processo de criação e desenvolvimento, principalmente por falta de apoio financeiro e patrocínio. Alguns até desistem, mas esse não foi o caso dos irmãos Chad e Jared Moldenhauer. Pensando em um sonho distante e desmotivados pelas sessões rotineiras de programação de seus respectivos empregos, eles decidiram pedir demissão, hipotecaram suas casas e apostaram no incerto. Mal sabiam eles que a maior aposta de suas vidas seria bem diferente do resultado das apostas dos irmãos cabeça-de-xícara e homem-caneca.Ao contrário do sucesso dos irmãos canadenses, os simpáticos utensílios de cozinha protagonistas de Cuphead tentam a sorte grande em um cassino durante um dia qualquer, mas são surpreendidos pelo azar de perderem a aposta definitiva para o dono do cassino, o próprio Diabo — que acaba ganhando a posse de suas almas. Arrependidos e desesperados, os irmãos clamam por perdão, mas o demônio lhes oferece um trato: caçar e derrotar todos aqueles que lhe devem algo. Sem muitas esperanças, mas convictos de que há uma luz no fim do túnel, os personagens Cuphead e Mugman partem para a aventura mais diabólica de suas vidas.
A primeira impressão é a que fica (ou não)
Ao iniciar Cuphead, seja vendo a história contada de dentro de um livro ou durante seu tutorial, você quase se convence de que seu visual cartunesco remete a um jogo de criança. As animações dos anos 1930 — baseadas no trabalho dos estúdios Fleischer, idealizadores de obras como Betty Boop e Popeye — trazem o sentimento de nostalgia, principalmente àqueles que viveram a era de ouro dos desenhos animados com Mickey Mouse, Pica-pau e até alguns velhos personagens da Warner Bros.Porém, a primeira impressão de facilidade já é logo descartada ao adentrar os desafios da primeira fase do jogo. Tem um porém, contudo: qual primeira fase? Sim, Cuphead não te obriga a sempre seguir o mesmo caminho, e até te encoraja, por meio da frustração, a mudar seu curso de ação. Qualquer que seja sua escolha de primeira, segunda e conseguintes fases, seu destino será uma enxurrada de mortes. Pode ficar tranquilo, isso é comum e perfeitamente aceitável para a proposta do jogo.
O desafio nosso de cada dia
É interessante falar sobre o processo de criação de Cuphead, bem como ele implica em dificuldade. O processo de criação dos cenários e personagens utilizando técnicas consideradas por muita gente obsoletas foi árduo, principalmente para uma equipe tão pequena. Os mais de 50.000 quadros que compõem toda a obra visual do jogo foram desenhados à mão e representam o carinho e a dedicação diários de cada um dos integrantes do estúdio.Cada mínimo detalhe — recriado não por engines poderosas mas sim manualmente pelos desenvolvedores — só poderia ser melhor aproveitado com um bônus para que cada jogador aprecie cada vez mais seus visuais autênticos: a dificuldade acentuada. É ela que vai fazer você curtir cada momento de tensão, vai te fazer treinar os reflexos contra toda nova transformação nos chefes, e te fazer gritar a cada vitória única e recompensadora. Isso tudo sendo (quase) totalmente justo, com pouquíssimas falhas em seu design ou imprecisão nos controles.
Todos os inimigos que você encontrará em seu caminho, percorrendo diferentes fases, serão diferentes tanto esteticamente como em seu comportamento. A maneira como lidar com cada criatura ou obstáculo deve ser aprendida, reaprendida e sempre melhorada, já que os desafios começam difíceis e só tendem a piorar. A mira durante as fases de plataforma — sejam estas do tipo run and gun ou desafios contra chefes — é precisa e pode ser travada por meio de um botão, ou correr livremente em ângulos de 45º. Devo dizer que esse tipo de escolha de mira em estágios me atrapalhou um pouco. Creio que esperava algo similar ao sistema de mira elogiado presente no sucesso recente Metroid: Samus Returns (3DS).
A busca pelos inadimplentes do submundo
Sob a premissa de serem perdoados após perderem a aposta mais arriscada de suas vidas, Cuphead e Mugman devem caçar e derrotar cada um daqueles que tem uma dívida com o Diabo, mas isso não necessariamente inclui aventurar-se pelas seções de run and gun das fases de plataforma clássica. Porém, recomenda-se que o jogador faça o serviço completo, pois será recompensado.As fases que não apresentam chefes têm moedas douradas ao longo de seu curso, que também podem ser encontradas durante a exploração do cenário ou em conversas opcionais com personagens do mapa — que nos surpreendem com diálogos dramáticos e cômicos. As moedas podem ser trocadas por upgrades de armas e novas habilidades, que são altamente recomendadas — ou praticamente obrigatórias — para certas batalhas. As melhorias vão desde mudar o tipo de tiro de uma das duas armas que você carrega até um upgrade que lhe concede uma vida extra mas que te penaliza com menor dano contra inimigos.
A seleção de chefes é única e se destaca não só pela dificuldade mas também pela diversidade quando comparada a muitos títulos de hoje em dia, com alguns estágios de plataforma e outros no comando de um avião, no melhor estilo bullet hell. Eu recentemente finalizei Dark Souls III (Multi) e Bloodborne (PS4) e aprendi bem o significado de um design impecável e variado de bosses unido ao sentimento de conquista após derrotá-los. E posso dizer que, dentro do escopo e da proposta de Cuphead, ele não fica muito atrás dos jogos da From Software nesse quesito. Aliás, o jogo foi inicialmente pensado apenas com chefes em mente, mas acabou recebendo uma gama mais diversificada de conteúdo após certa fase de desenvolvimento.
Há duas maneiras de carregar a barra de especiais: atirando contra inimigos ou “rebatendo” inimigos — recurso conhecido como parry. No primeiro caso, a barra vai se completando lentamente à medida que mais disparos acertam os adversários. Já no segundo caso, você vai depender primeiramente da sorte de aparecer um objeto rosa na tela e depois da sua perspicácia e reflexo para fazer parry no momento certo — você logo aprenderá a executá-los corretamente durante o jogo, mas prefiro não dar spoilers de como isso acontecerá.
Os especiais, que são divididos em dois estágios, dependem da arma em mãos e de fases opcionais que lhe concederão mais opções. O especial simples é carregado mais rapidamente, e causa um dano menor quando ativado. Já o super especial requer cinco barras do especial simples, mas causa um dano mais significativo. A arte dos especiais é bem cômica, porém mecanicamente ele apresenta um pequeno problema: ao sair de um certo super especial — realizado no ar — você naturalmente cai, mas se algo estiver em seu caminho, você é penalizado. Acho que seria um pouco mais justo haver um intervalo de invulnerabilidade após o especial, pelo menos até você ter controle sobre seu personagem.
A arte não para por aí
Eu sou fã de trilhas sonoras em jogos. Isso é um fato, e cada dia mais me apaixono mais pelo capricho dos jogos para com seus sons e, sobretudo, para com a escolha de música adequada, na medida certa e na hora certa. Não preciso mencionar que trilhas sonoras devem estar em total harmonia com o visual, enredo e sentimento transmitidos pelo jogo. Nesse quesito, Cuphead é extraordinário e inesquecível. A trilha sonora de Cuphead é composta por jazz leve e rápido, um pouco de samba e ritmos latinos, música folk americana dos anos 1920/1930 e também um estilo bem singular chamado Barbershop music, caracterizada pelos timbres distintos de quatro cantores e ausente de instrumentos.Os momentos nos quais cada canção foi usada, sejam eles de apreensão, exploração ou durante uma caminhada despretensiosa atirando em inimigos, combinaram muito com a melodia de cada obra musical — que foi composta especialmente para o jogo. Algumas músicas me fizeram recordar de jogos que experimentei no passado, como Fallout 3 (Multi) e principalmente Bioshock Infinite (Multi), mas, tratando-se de trilha sonora, Cuphead realmente rege cada acorde e melodia com maestria e excelência. Para os interessados, a trilha sonora pode ser adquirida na versão de PC via Steam, na forma de DLC.
A presença de um modo cooperativo ajuda na batalha insana contra os chefes, e é interessante experimentar esse modo se você tiver alguém para te ajudar durante a jornada. Porém, o excesso de informação da tela — seja pelos disparos de seus rivais ou pelos disparos de suas próprias armas — pode prejudicar a jogabilidade. Além disso, a falta de um modo cooperativo online ou até de modos competitivos/versus acaba limitando uma experiência que poderia ser ainda maior e mais relevante para a modernidade dos jogos eletrônicos.
Mesmo não sendo revolucionário, Cuphead se destaca por um estilo artístico muito autêntico, trilha sonora impecável e jogabilidade justa e divertida, acompanhados de um sentimento de recompensa disfarçado de frustração. É um dos melhores indies que já tive a oportunidade de jogar, certamente um dos melhores exclusivos do Xbox One. Além disso, o preço do jogo é convidativo e acaba motivando ainda mais os jogadores a adquirirem uma versão legítima, com tudo que um excelente jogo tem direito.
Prós
- Visual único, extremamente fiel aos desenhos do anos 1930;
- Jogabilidade precisa e justa, com ampla variedade de inimigos e chefes;
- Bom desempenho e fluidez de movimento;
- Recompensa bons jogadores pela habilidade, e não pela sorte ou acaso;
- Trilha sonora marcante e extremamente adequada à época retratada.
Contras
- Ausência de modos diversos e modo cooperativo online;
- Falhas mínimas de design atrapalham a experiência de movimentação e mira.
Cuphead — XBO/PC — Nota: 9.0
Versão utilizada para a análise: PC