Análise: Hacknet (PC) hackeia o gênero de text adventure

Com ótima história, mecânicas interessantes e ambientação inusitada, o jogo da Surprise Attack Games surpreende.

em 19/08/2015
Hacknet (PC) é um text adventure”. Tal revelação veio a mim de forma súbita no meio de minha experiência com a obra da Surprise Attack Games. Não foi fácil perceber isso — na verdade, parece que nem os próprios criadores do game perceberam, descrevendo-o um “simulador de hackerismo”.


Só consegui perceber o verdadeiro gênero de Hacknet durante um de seus clímax. Após uma série de eventos, fui privado de todos os elementos visuais e sonoros do game, tendo acesso apenas a um terminal básico. Naquele momento, percebi que, a despeito de seus elementos audiovisuais, o jogo era totalmente focado na interação e descrições textuais. Eu estava lidando com a reconstrução de um gênero há muito esquecido.

Textual, apesar do visual

Jogadores mais novos podem não estar familiarizados com o gênero de text adventure, então uma breve explicação dele pode se fazer necessária. Também conhecidos como ficções interativas, são alguns dos jogos mais antigos. O mais velho que se tem notícia é Wander, lançado em 1972 e recuperado recentemente.

Em games do tipo, o jogador interage escrevendo comandos para um interpretador de texto, que executa ações dependendo do que foi ordenado — ou retorna um erro, caso um comando inexistente seja passado. Por exemplo, se você está em uma sala, alguns comandos válidos poderiam ser “ir para a direita” ou “ir par o norte”. O interpretador de texto tentará executar a ação desejada, descrevendo o resultado dela — descrevendo a nova sala que seu personagem chegou, ou até mesmo dizendo que não é possível ir para a direção desejada devido a algum obstáculo.

Hacknet segue os mesmos princípios à risca. Você tem um interpretador de texto (aqui chamado de “console”) e executa ações escrevendo os comandos certos nele. A diferença é que, aqui, em vez de escrever “ir para a direita” você deve escrever “connect 68.12.11.9”.

A nomenclatura dos comandos não é a única diferença. Vários elementos novos são adicionados ao molde dos antigos text adventures. Um deles, obviamente, é a presença de áudio e visual. Teoricamente, isso descaracterizaria o jogo como um text adventure. Na prática, entretanto, o foco do game não deixa de ser textual.

Os visuais e músicas não têm como função majoritária criar ambientação ou colaborar com a narrativa. A função deles é dar ao jogador feedback de suas ações, tornando o jogo mais acessível.

Isso se faz necessário pelo fato de alguns conceitos de computação utilizados poderem ser de difícil compreensão para certas pessoas. O game não chega a ser puramente técnico, mas é genuíno em sua representação do mundo do hackerismo e computação. Ele até mesmo copia verbatim certos comandos utilizados por sistemas Unix do mundo real.

Representações gráficas e sonoras ajudam a abstrair estes comandos e conceitos, tornando-os mais palatáveis para todas as audiências. É muito mais fácil entender o que seria um “nó de uma rede”, por exemplo, com um mapa bonitinho em que cada computador é representado como um ponto, com várias ligações entre eles.

É até possível executar algumas ações através da interface visual, mas a maioria das operações se dão através do console. Quase toda a interação do jogo é obrigatoriamente textual. É também através do texto que a ambientação, caracterização dos personagens e a trama são passados. Prepara-se para ler muitos emails, conversas de IRC, descrições de comandos, logs de computador…

Contra o tempo

Mais importante que o feedback audiovisual, a adição mais interessante de Hacknet é administração do tempo. Pode-se dizer que o game é um text adventure em tempo real. Cada ação leva determinado tempo para ser executada e várias ações podem ser efetuadas simultaneamente — contanto que haja recursos o suficiente para isso.

Cada programa utilizado para invadir sistemas utiliza um pouco de sua RAM enquanto em execução, RAM esta que é finita. O jogador tem que pensar muito bem em quais ações executará e em que ordem. Desperdiçar tempo pode ser fatal e, assim como a RAM, ele não é infinito.

Enquanto em jogos clássicos do gênero como Zork (PC) você poderia ir até a padaria e voltar sem medo que os inimigos fossem lhe atacar, aqui seus oponentes (e vítimas) estão ativamente tentando impedir suas ações. Demore demais para invadir um sistema e você pode ser obrigado a reiniciar todo o processo. Dependendo do ponto da trama, as punições podem ser ainda maiores.

A simples adição de um cronômetro pode parecer trivial, mas tem grandes efeitos benéficos no jogo, tornando a jogabilidade mais dinâmica e profunda. Sem essa simples inclusão, Hacknet seria cíclico e repetitivo, uma eterna reprise do tutorial inicial com um ou outro novo comando a cada duas horas.

O mais interessante é se o cronômetro realmente chega a zero. Ele não é uma mera ameaça vazia para fazer o jogador se sentir pressionado, mas um aviso de que punições relevantes e reais podem acometê-lo se ele não souber gerenciar seu tempo e dominar as mecânicas do jogo.

Na toca do coelho

Essa sensação de que há muito a se perder é corroborada pela narrativa do game. Ela aborda de maneira fantástica a cultura hacker. Alguns detalhes mais “entediantes” do mundo da computação são deixados de lado, mas, ainda assim, tudo tem grande embasamento na vida real.

Até certo ponto, isso chega a ser um pouco assustador. Algumas missões perto do final, em que é necessário invadir e destruir sistemas que podem afetar as vidas (literalmente) de várias pessoas, nos fazem refletir sobre os perigos do hackerismo. Saber que muitas das falhas de segurança apresentadas o game são baseadas em casos reais não é nem um pouco reconfortante.

Os elementos audiovisuais ajudam a dar peso a tudo isso, ditando o ritmo do jogo. Hacknet tem um ritmo lento e calmo à princípio. À medida que se consegue mais ferramentas e a administração do tempo se torna mais essencial, a estética se molda à história, ajudando o jogador a imergir na trama enquanto vê o quão funda realmente é a toca do coelho.

Tudo se combina muito bem, fazendo com que você realmente se sinta um hacker. A sensação de liberdade é grande e as possibilidades imensas. Desde o início o jogador pode se perder no grande emaranhado de computadores e tentar invadir qualquer sistema que quiser, muitas vezes se perguntando “eu deveria poder fazer isso?”. Claro que pode. Você é um hacker, você pode fazer o que quiser… Desde que não seja pego.

Talvez chamar Hacknet de “simulador de hackerismo” realmente seja o mais adequado. Mas, não obstante, ele é também um dos melhores text adventures modernos — principalmente pelo fato de ser um dos únicos.

Prós

  • Excelente reconstrução do gênero de text adventure;
  • Ótima trilha sonora;
  • Abordagem bem genuína da cultura hacker;
  • Narrativa interessante e divertida;
  • Problemas inteligentes e que fazem pensar;
  • Muita liberdade de ação.

Contras

  • As mecânicas e comandos básicos são meio repetitivos;
  • Ritmo lento, a princípio.
Hacknet — PC — Nota: 9.0

Capa: Felipe Araújo

Escreve para o GameBlast sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0. Você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.
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