Narrativas embutida e emergente: o desafio do enredo nos games

Os games são capazes de transmitir histórias de uma maneira só sua. Refletiremos alguns problemas na hora de construir a narrativa de um jogo.

em 14/04/2015
Há algumas semanas, publiquei uma matéria aqui no Blast sobre modelos narrativos centrados na experiência do jogador. Como o tempo é curto e eu não quero te obrigar a ler o primeiro texto, ainda que eu aconselhe a isso, vou resumir o que foi tratado nele e a que problema chegamos. Partindo do sucesso de Middle-Earth: Shadow of Mordor e da ótima impressão que o jogo causou em vários desenvolvedores de games, analisamos as possibilidades de uma narrativa aberta centrada na experiência do jogador e como o título caminha nesse sentido.


Shadow of Mordor trouxe o interessante Sistema Nemesis, no qual a hierarquia dos Uruk-Hai é gerada organicamente, está sempre mudando com a interferência do jogador e até mesmo quando este não age diretamente, a partir do resultado de suas ações anteriores. Por exemplo, você ficou um tempo sem brigar com nenhum capitão, só fazendo missões de caça, mas, no meio tempo, algum inimigo que te venceu está mais forte e pode continuar se promovendo nas fileiras do exército. As possibilidades crescem ainda mais quando o jogador resolve interferir com frequência.
Esse aqui subiu muito na hierarquia enquanto estive fora, melhor acabar logo com isso.
Fizemos um apanhado de alguns jogos e de como a narrativa aparece em diferentes propostas e chegamos a um problema central: como desenvolver um game no qual a narrativa seja aberta e centrada nas ações de quem joga e, ao mesmo tempo, trazer um mundo rico e interessante o suficiente para que a experiência narrativa seja completa e satisfatória? Para tentar refletir esse problema vamos falar de narrativa embutida e narrativa emergente.

Dois tipos distintos ou complementares?

Por que separar a narrativa em dois tipos? Pois os games são uma mídia que possui uma especificidade na hora de contar histórias. Após ter publicado o primeiro texto, um colega de redação aqui do Blast me indicou um vídeo do canal Ludobardo. Para quem quiser aproveitar o link e ver o conteúdo, sintam-se convidados, é mais que recomendado.

Narrativa embutida é aquela com a qual estamos mais acostumados, ela é análoga à que aparece nos filmes e livros. É a história que já vem pronta (por isso o nome embutida, ou até mesmo emoldurada). Vejamos um título bastante linear e centrado na narrativa: The Last of Us.
Apreciando a vista antes de encontrar zilhões de infectados.
Houve um problema com fungos em algum momento da história e vários “zumbis” apareceram. O primeiro momento do jogo retrata os acontecimentos desse surgimento dos infectados. Em um salto de 20 anos, chegamos a um mundo já pós-cataclisma. Vemos que existem organizações de tipo militar, outras como os vagalumes, um monte de ladrões e saqueadores, e conhecemos um pouco mais de como funciona aquele mundo. Todos os acontecimentos do jogo e a forma como Joel e Ellie interagem entre si e com os outros personagens em diálogos e cutscenes fazem parte da narrativa embutida.

Para ser mais didático, pergunte-se o seguinte: isso que está sendo contado no jogo poderia ser contado em um filme de forma igual? Se a resposta é sim, tal parte da narrativa do jogo é embutida, assim como nos exemplos dados do já clássico título da Naugthy Dog. E a narrativa emergente, então?

É aquela que podemos dizer ser especifica dos jogos. São as ações do jogador que começam a fazer parte daquela história que está sendo contada, e elas mesmas contando tal história. Como você vai vencer os desafios, de que forma vai explorar e passear pelos mapas, que escolhas poderá fazer etc. Na mesma linha de pensamento: se algo que está sendo contado só poderia ser contado em um game, ele faz parte da narrativa emergente (ou ludonarrativa).

Conflitos e dificuldades

Os games, então, possuem duas formas narrativas que convivem. A ideia de uma narrativa aberta centrada na experiência do jogador quer dizer jogar fora a narrativa embutida? Eu acredito fortemente que não, muito pelo contrário, inclusive. A busca por uma narrativa cada vez mais aberta e geométrica, como o Lego Narrativo de Ken Levine, por exemplo, não se beneficiaria, em meu ponto de vista, de um abandono completo do cuidado com a narrativa embutida. As melhores experiências narrativas se dão quando as duas se completam.
Não será um Bioshock, mas o que Ken Levine está preparando para a gente?
Mas, antes de falar de coisa boa, hoje falaremos da dificuldade de harmonizar narrativa embutida e emergente. E, para isso, vamos comentar três jogos consagrados: The Elder Scrolls V: Skyrim, Red Dead Redemption e Xenoblade Chronicles.

Missão principal? Que missão principal?

No texto anterior, eu já havia utilizado The Elder Scrolls V: Skyrim como exemplo. A ideia era mostrar que o jogo, mesmo tendo um mundo aberto vasto, cheio de desafios, missões, NPCS e lugares diferentes; quase tudo completamente opcional; não se configuraria ainda como uma narrativa aberta centrada na experiência do jogador. Muito conteúdo não quer dizer que a narrativa seja tão diferente assim para cada jogador. Basicamente, ao completar 100% do jogo com dois personagens diferentes, realizando escolhas opostas, você terá conhecido a mesma história que outro jogador que fizer o mesmo, e gasto aí umas boas 350 horas da sua vida.

A mitologia e as bases da história do mundo de TES é fascinante. Ainda assim, o jogo tem um problema narrativo (e até mesmo de design) muito sério: a missão principal envolve uma ameaça urgente e perigosa e o jogador não apenas pode, como é encorajado a fazer inúmeras missões paralelas menores, chegando ao ponto de esquecer completamente a história central. Além disso, você é o Dragonborn, realiza inúmeros feitos, e as pessoas e cidades parecem não ligar pra nada do que você faz.
O que fazer agora? Salvar o mundo ou buscar um anel para um cara aleatório?
A proposta principal de Skyrim enquanto jogo é justamente a exploração do mundo aberto e a realização de inúmeras missões, mas vemos como é dificil casar a narrativa com essa ideia. Sabemos que muitos jogadores podem não ligar, mas existe um conflito muito grande entre narrativa embutida e narrativa emergente aí. Um problema complicado de resolver, mas não impossível. Um caminho poderia ser dissolver a quest principal em outras menores, cada uma com seu arco de história. Outro seria pensar em uma main quest que abarcasse um tempo mais lento, que não fosse nos mostrada pela narrativa embutida como algo urgente.

Anjo na narrativa, demônio no gameplay

Conforme mais liberdade de ações temos em um game, torna-se mais difícil balancear a narrativa. Vejamos Red Dead Redemption: nosso protagonista, John Marston, é mostrado em todas as cutscenes como um sujeito que não quer mais ser o fora-da-lei, que quer pagar uma dívida e resolver sua situação logo para viver bem e feliz com sua família. Em suma, no momento do jogo, a narrativa embutida nos apresenta ele como uma pessoa boa.
Quem quer uma sequência levanta a mão!
Entretanto, ao assumirmos o controle de John, podemos fazer as maiores atrocidades possíveis. E a reação dos outros NPCS nas cutscenes, e a própria participação de Marston, continua a nos apresentar um sujeito que quer paz apenas. Novamente, vemos narrativa embutida e emergente em um claro conflito. E é um problema recorrente em jogos que te possibilitam ser “bom” ou “mau”, às vezes até com medidores de seu alinhamento. Em nome da jogabilidade e da liberdade no gameplay, a coerência da narrativa é destroçada.
Mesmo focado na história e nas escolhas, Catherine também enfrenta problemas com a narrativa.
Esse problema nem é exclusivo de jogos de mundo aberto. Catherine, por exemplo, parece não conseguir balancear as próprias escolhas do jogador com a história que se desdobra, e olha que o jogo é centrado na narrativa e nessas escolhas. Realmente é complicado harmonizar narrativa embutida, emergente e jogabilidade. Sabe quem consegue fazer isso de maneira satisfatória? Trevor.

A inclusão do personagem em GTA V é o verdadeiro casamento entre o comportamento caótico, aleatório e “videogueimesco” que se espera do jogador de GTA, e um personagem que é todos esses adjetivos que classificam as ações do jogador. GTA V lhe dá a chance de fazer muitas coisas diferentes, e Trevor é um personagem que, do ponto de vista da narrativa embutida, pode conceder essa possibilidade sem prejudicar a coêrencia interna do jogo.

Lendários inimigos… que nem conseguem me acertar

Um dos meus JRPGs favoritos também acaba tendo um problema de narrativa e design, um que é causado pelo desbalanceamento. É um problema exclusivo de Xenoblade Chronicles? Não, é algo bem recorrente no gênero como um todo, mas Xenoblade tem algo seu que deixa tudo ainda mais estranho.

Felizmente, o jogo nos brinda com várias missões paralelas e desafios opcionais. Conforme vamos completando elas, caçando os inimigos mais difíceis, subindo de level e conseguindo equipamentos melhores, algo estranho acontece: nós varremos os inimigos do caminho da história principal com muita facilidade.
Não importa o tamanho e a importância na narrativa, se você estiver treinado o inimigo nem faz cócegas.
“Pedro, você está sendo sacana, o jogo faz certo em deixar as coisas mais difíceis serem opcionais, para poder contemplar diferentes tipos de jogadores”. Concordo, mas este texto é justamente uma reflexão de como existem conflitos entre narrativa embutida e emergente mediados pelas ações jogáveis. No caso de Xenoblade Chronicles, chegamos ao cúmulo de não sermos nem acertados por um chefe que, do ponto de vista da história, é um ser todo poderoso. Ele só dá “miss” nos membros do grupo.

Outro problema do título é que 90% das missões paralelas não lhe dão itens e nem momentos narrativos que justifiquem o tempo gasto com elas, a não ser saciar nossa ânsia por completar o jogo 100%. Aí você me pergunta novamente: “Quer dizer que você não gosta de Xenoblade Chronicles, Pedro?” Amo, já disse lá em cima que é um dos meus favoritos, assim como Red Dead Redemption. Skyrim não é um dos meus prediletos, mas gosto, acho um bom jogo. A ideia não é depreciar nenhum dos títulos, apenas mostrar como narrativa embutida e narrativa emergente podem entrar em conflito e gerar um problema narrativo para o game.

Semana que vem continuaremos com essa discussão e falaremos de alguns títulos que trazem propostas e soluções inteligentes para o possível conflito, formando uma experiência em que narrativa embutida e emergente se completam.
E você, já sentiu um momento de incoerência narrativa em um game? E que título é para você um bom exemplo de harmonia entre os dois tipos de narrativa?

Revisão: Jaime Ninice
Capa: Felipe Fabricio

Escreve para o GameBlast sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0. Você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.
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