A volta dos que já se foram (há mais de dezesseis anos)
Se fica aquele gostinho de sacanagem no fundo da boca quando vemos uma remasterização de um ano para o outro, a mesma sensação dificilmente acontece ao falarmos de um jogo lançado em 1998. O anúncio era bem improvável, mas quando Tim Schaffer (criador do jogo) subiu ao palco no evento da Sony na E3 2014 e começou aquela brincadeira envolvendo a carta escrita pela “pequena fã”, o imponderável estava para acontecer. Grim Fandango Remastered foi anunciado para PS4, Vita, e, uns dias depois da E3, para PC.A remasterização, em si, vai retrabalhar as texturas e os modelos do jogo original, que já eram bem bonitos em 1998 e nem envelheceram tão mal assim, provavelmente por conta de uma direção de arte bem competente. O áudio também vai ser incrementado, o que é um ponto bastante positivo, visto que os diálogos (todos com atuação vocal) e a trilha sonora são partes centrais da experiência do jogo. Também tem a promessa de uma repaginada nos efeitos de iluminação que não eram lá aquelas coisas nos tempos idos. Mas tudo isso aí, por mais interessante que seja, não é o motivo de estarmos falando do jogo um dia antes de seu (re)lançamento.
Um conto sobre traição e redenção
O motivo principal de tanta expectativa e alegria com esse retorno se dá porque o jogo original era muito bom. Antes de continuar a falar de Grim Fandango, é justo fazer uma ressalva. Eu joguei o jogo na época de lançamento e mais uma vez uns dois anos depois e, infelizmente, não mais desde então. Meu CD riscou, não achava mais para comprar. Coisas tristes que acontecem na vida de todo jogador. Enfim, vamos ao que interessa.Mais um dia no serviço levando bronca do chefe! |
Grim Fandango conta a história de Manny Calavera, um sujeito que como todos os outros personagens do jogo está no além. Mais precisamente na Terra dos Mortos, uma espécie de estágio entre a vida e o paraíso. Sempre que a pessoa morre e chega nesse lugar, recebe a informação que tem direito a um trem veloz que te leva ao nono paraíso em segundos ou a uma bengala com uma bússola (o que provavelmente vai te fazer nunca chegar, ou na melhor das hipóteses demorar bastante), entre tantas outras possibilidades. O que na teoria deveria indicar o que a pessoa merece é a forma como ela levou a vida. E quem pesquisa e descobre o melhor pacote para o cliente é um agente de viagens do Departamento dos Mortos.
Bienvenidos a Tierra de los Muertos
El Marrow, primeira parada da jornada do Sr. Calavera, serve como um ótimo estágio inicial. Desenrola o início da trama, nos apresenta as personagens centrais, evidencia as novas mecânicas presentes no título e já vai criando a ótima ambientação do jogo. Já nela vemos a visão dos desenvolvedores de criar um mundo inspirado nas tradições mexicanas e nos filmes noir. A arquitetura de cidade mistura temáticas astecas com Art Decó. E essa mistura acaba demarcando um estilo único para o game, assim como serve para capturar a atenção do jogador para com tal mundo.
A trilha sonora também realiza um trabalho interessante de imersão. Peter McConnell, compositor de Grim Fandango, realizou pesquisas sonoras focadas nos ritmos sul-americanos (principalmente os mariachis) e no jazz. As músicas criadas a partir da raiz latina são muito gostosas de se escutar, mas o brilho maior fica com as diversas faixas de jazz. Elas compõem uma atmosfera semelhante a dos filmes noir. São sons suaves que dão a trilha das conversas sagazes e bem humoradas que pipocam aos montes pelo jogo.
E esse humor é um fator importante nele. Está presente nos diálogos, nos cenários, nos acontecimentos e nos vários personagens. Mesmo lidando com temáticas sérias e flertando com a atmosfera noir sombria, o game se mantém bem humorado pela maior parte do tempo. E é algo que o jogo te explicita desde cedo, já deixando claro ao jogador que tipo de experiência narrativa ele vai nos apresentar.
Cabe ressaltar a excelente dublagem em português da versão original que, felizmente, retornará no título remasterizado.
As mecânicas da aventura
Grim Fandango é mais uma pérola da Lucas Arts, empresa que fazia grandes adventures (também conhecidos como point & click) na era de ouro do gênero, ao lado de desenvolvedoras como Sierra, Dreamers Guild, etc. A grande novidade é que Grim Fandango foi o primeiro jogo em 3D da Lucas Arts (ainda que Full Throttle tenha flertado em poucos momentos com a terceira dimensão). A escolha por gráficos pré-renderizados acabou caindo como uma luva no estilo do jogo e na atmosfera que criou. Os modelos em 3D de personagens e itens não pareciam descolados de maneira grotesca do restante do cenário. Mas o que mais chama atenção nessa transição foi a escolha de “limpar a tela”. Vejam bem, clássicos como Day of the Tentacle optavam por dividir a tela. Acima rolava o jogo e abaixo ficava o menu com todas as ações possíveis e itens disponíveis no inventário. Era uma coisa que não atrapalhava a experiência, até deixava ela bem mais fluída, mas que ficaria bastante estranha em um jogo em 3D. Full Throttle já havia feito essa limpeza na tela, deixando apenas o cursor até o momento em que fosse necessário clicar em algo para fazer alguma ação. Seria um infeliz retrocesso voltar ao esquema antigo.Em Day of the Tentacle o menu agilizava a utilização dos itens. |
O mais polêmico, entretanto, foi a opção de deixar claro para o jogador que algo era de interesse através de uma simples olhada de Manny. O personagem principal mostra com o movimento de sua cabeça que algo pode ser analisado, investigado ou coletado. Isso acabou retirando o cursor que ficava na tela. Aliás, talvez a mudança mais drástica é que Grim Fandango era jogado através do teclado e não do mouse. Porém, sem o menu de itens abaixo ou aparecendo em um determinado momento a partir do cursor, utilizar itens ficou um pouco mais demorado. Você tinha que abrir o inventário e ir alternando até o objeto desejado. Isso é bastante chato em relação à rapidez que os esquemas anteriores possibilitavam. É o tipo de opção no design de um jogo que traz coisas positivas, mas ao mesmo tempo problemas. Mas tal decisão se deu no intuito de aumentar a imersão através de uma atmosfera mais literal, sem cursores ou menus na tela, para dar o tom desejado pelos desenvolvedores para o ambiente do jogo. Existe um texto bem legal sobre o assunto no gamasutra, para quem quiser se aprofundar.
Já em Full Throttle apenas o cursor aparecia na tela de jogo |
Mas, mesmo esse detalhe que atrapalha o ritmo do jogo acabou sendo enfrentado de uma maneira sagaz. Cada item que você vê sair do terno de Manny Calavera recebe comentários bem humorados. Uma frase inesquecível do jogo é “Minha foice, gosto de deixa-la perto de onde ficava meu coração”.
Não deixe de conhecer (ou retornar) ao mundo dos mortos
Grim Fandango não foi lá um sucesso comercial. Vendeu o suficiente para não dar prejuízo. Foi, no entanto, se tornando um clássico cultuado ao longo dos anos. Como não teve uma tiragem tão grande assim, não é um título muito fácil de se encontrar. Além disso, desde 1998 é complicado de se rodar em diversos PCs. O game em si tinha alguns problemas de textura, iluminação e um número razoável de bugs, principalmente pelo fim da aventura. São problemas que a remasterização provavelmente irá corrigir.
Mas para quem espera muita diferença em relação ao jogo original, a nova versão talvez seja desapontadora. Se tratam apenas de alguns retoques, e não uma transformação geral do título. Promete ser, no entanto, a versão definitiva de Grim Fandango. No mínimo o relançamento de um incrível adventure. Gênero que foi dado como morto e ainda assim vive. Da mesma forma que os personagens de Grim Fandango.
Capa: Diego Migueis
Revisão: Leonardo Nazareth