Há uma tendência geral no mundo dos videogames atualmente de se estagnar, escolher um local confortável para repousar uma franquia bem sucedida e aproveitar a montanha de dinheiro que isso é capaz de trazer. Companhias criam franquias anuais, forçando equipes a trabalharem num ritmo desumano e que acabam resultando num produto final inacabado, cru.
Pois é, esqueça isso quando se trata da Bioware e de Dragon Age: Inquisition (Multi), um jogo enorme em todos os sentidos, que, em vez de manter-se numa fórmula repetitiva, resolveu reinventar a própria série num novo rumo, aproveitando lições aprendidas.
Dragon Age não é uma franquia popular, e é bom que isso seja dito. Procure notícias sobre o jogo em sites brasileiros (por exemplo, esta aqui) e leia os comentários. A maior parte das pessoas nunca teve contato com a série e está ouvindo falar pela primeira vez agora, com a repercussão positiva do jogo. Talvez isso ocorra pelo fato do primeiro jogo, Dragon Age: Origins (Multi), ter sido um RPG de nicho, daqueles que praticamente emulam uma experiência de RPG de mesa. Já Dragon Age II (Multi), embora mais acessível para um público geral, tinha alguns problemas que dividiram opiniões entre os fãs, que dirá entre quem não tinha contato com o universo…
Agora a série está conquistando a merecida atenção, e o melhor: sem tornar o jogo algo estranho para quem já conhecia Thedas.
Um mundo quebrado
Vamos do começo: o mundo de Dragon Age é, aparentemente, um típico mundo de fantasia medieval: há elfos, anões, magos e dragões. Mas é só aparente mesmo. Os magos são excluídos da sociedade. Os anões vivem no subsolo em sua grande parte, vivendo dos restos de um império literalmente soterrado. Os elfos se dividem entre aqueles que mantêm as tradições da raça, isolados no mundo selvagem, e outros que foram escravizados pelos humanos após uma guerra. E os dragões, bom… eles são dragões mesmo, a não ser que sejam arqui-demônios que iniciam eventos de destruição em massa chamados de Blights (ou Podridão, na esquisita tradução nacional).Origins mostrou a mais recente Blight, apresentou o universo e deu ao jogador a chance de moldá-lo. Dragon Age II levou o macro para micro, centrando os acontecimentos em uma única cidade, cujo impacto atinge o mundo todo e dá o tom para o início de Dragon Age: Inquisition. É que no fim do jogo anterior, os magos se rebelaram contra os templários, a ordem apontada para mantê-los na linha. E no início de Inquisition ocorre um encontro entre as duas partes para alcançar a paz.
Um pequeno problema quando demônios caem de um buraco na realidade criado no céu. |
Não entrarei nos pormenores da intrincada história do jogo, basta dizer que as peças se encaixam aos poucos e há um ritmo interessante de crescimento: a Inquisição começa pequena, com um objetivo claro. O personagem é meio arrastado pelos eventos, com a única motivação de limpar o próprio nome, e a partir de um certo momento, as coisas ganham uma nova proporção. Esse “primeiro ato” do jogo, que dura cerca de 10 horas, é essencial para que você valorize o que acontece a seguir.
A alma está nos personagens
Mas vamos fugir dos spoilers e falar do jogo em si. Ao contrário de Dragon Age II, Inquisition te permite assumir o papel de um ou uma protagonista de diversas raças, e escolhendo entre três classes diferentes - duas delas com variações. É uma gama enorme de escolhas logo de cara e não foi surpresa para mim quando fiquei travado por mais de uma hora tentando decidir como seria minha primeira vez jogando. Uma vez decidido, não tem como alterar a aparência, voz ou classe do personagem.Companheiros (em todos os sentidos) para todos os gostos. |
O roteiro do jogo, que poderia ser fraco e solto demais, considerando a natureza de mundo aberto, é excelente e faz tudo bem: desde os pequenos e impactantes momentos em que um personagem se desenvolve diante dos seus olhos até os grandes e épicos, incluindo castelos desmoronando. Importante nisso é o ritmo: é um jogo extremamente longo, mas graças a um ritmo bem equilibrado, é fácil chegar às 50h de jogo pensando: “não acredito que joguei tudo isso”. O fato de chegar no fim do jogo e se deparar com uma sequência de plot twists é bem interessante também, e o fim do jogo só deixa com vontade de ter logo DLCs e o próximo da série.
Lutas, loot e… dragões
É claro que se o jogo fosse problemático na jogabilidade essas horas se tornariam um martírio, independente do quão boa fosse a história. Mas houve melhorias em todos os sentidos. O jogo não é mais um RPG de nicho, a visão estratégica é totalmente opcional e dispensável em dificuldades menores, podendo ser jogado todo em “ação” mesmo, lembrando o estilo de Dragon Age II, só que melhorado e facilitando a vida de quem gosta de pensar no que está fazendo, mas sem ter de parar a cada ação. Continuam havendo “combos”, que envolvem certos status causados por poderes que aumentam o dano de certos tipos de ataque, e isso facilita muito a vida."Tudo isso será seu, S-digo, Inquisidor" |
Os dragões estão espalhados pelos mapas, alguns acessíveis bastando entrar em seus ninhos, outros escondidos e outros que precisam de uma quest para que possam ser caçados. As batalhas são bem longas e envolvem alguns dos momentos mais bonitos do jogo, com os dragões voando em círculos em torno do jogador.
Tirando selfies na sua viagem por Thedas
Aliás, beleza é algo contestável aqui. Se você vai jogar Inquisition na nova geração ou PC, vai se deparar com um jogo que te dá vontade de tirar fotos e postar no Facebook a cada dez minutos. Pelo menos foi o que eu fiquei fazendo no meu PlayStation 4 (admito, comprado por causa desse jogo). Os cenários são absolutamente lindos e é incrível que, em alguns mapas, seja possível ver um castelo ao longe que você realmente pode alcançar se for andando. Já na geração antiga o jogo parece até ultrapassado visualmente. A verdade é que a decisão de lançar Inquisition para PS3 e Xbox 360 é um tanto questionável, puramente comercial, já que a própria equipe deixou claro que o jogo foi desenvolvido para a nova geração. Coisas de transição.De qualquer maneira, a parte visual do jogo só deixa a desejar (na nova geração) quando esbarra onde a Bioware sempre falhou: cabelos e interação, tanto entre personagens quanto com o cenário. Todo momento que envolve o toque entre dois personagens é estranho, e quando é necessário que peguem um objeto a coisa fica mais estranha ainda. Não estraga nada, é só algo que ainda pode melhorar muito.
Para entusiastas do tarô. E do design. |
Ah, como esquecer da trilha sonora? Além da trilha incidental (aquela orquestrada que toca no fundo), o jogo tem um detalhe encantador: várias músicas que uma barda canta nas tavernas pelo mundo, que envolvem a história do jogo. São músicas excelentes e que me fizeram ficar parado nas tavernas ouvindo.
Bugs e patches
Quem começou a jogar no primeiro dia pós-lançamento se deparou com um jogo um pouco problemático, com direito a diálogos que não passavam, fazendo necessário sair do jogo e voltar, a voz do protagonista mudando do nada e missões que não se davam como concluídas mesmo quando se atingia o objetivo. Depois de dois patches, a grande maioria dos bugs sumiu, mas ficou claro que a equipe poderia ter se utilizado de mais algum tempo de desenvolvimento. Isso também se aplica a certos elementos que poderiam ser dinâmicos: em um determinado mapa, há um rio congelado. Seria fácil imaginar que você tem um jeito de descongelar o rio… mas não é o que acontece. Em compensação, num outro mapa, há uma vila alagada que você precisa drenar usando uma represa, o que transforma todo o ambiente. Uma pitadinha do que poderia ocorrer durante todo o jogo.Mas que diferença faz? Nunca ouvi falar dessa cidade. |
Bom, falei falei e não falei muita coisa. A verdade é que Dragon Age: Inquisition foi o primeiro jogo da nova geração que me fez ficar grudado no console (inFamous: Second Son me fez quase desligá-lo em alguns momentos) por horas, querer sair do trabalho mais cedo para jogar, tirar screenshots e postar no Facebook, enfim… foi a primeira vez que me senti orgulhoso por ter um videogame da nova geração. Como fã da Bioware de longa data, ver finalmente um reconhecimento como este é ótimo, ainda mais com um jogo tão certeiro, ainda que com poucos problemas, que de maneira alguma anulam as vitórias ali, incluindo a volta por cima da Bioware após as críticas a Dragon Age II e ao final de Mass Effect 3.
Prós:
- Roteiro excelente, desde os momentos épicos até os intimistas;
- História intrincada e com bom ritmo;
- Jogabilidade equilibrada entre estratégia e ação;
- O multiplayer não tem relação com a história e pode ser completamente ignorado sem prejuízos;
- Um mundo enorme com toneladas de conteúdo.
Contras:
- Bugs numerosos, felizmente reduzidos pelos patches;
- Pouco acessível para recém-chegados ao universo;
- Modo multiplayer tão pobre e repetitivo que nem mereceu ser mencionado na análise;
- Sensação de que alguns elementos poderiam ter sido ainda mais explorados.
Dragon Age: Inquisition - Multi - Nota: 9,0
Revisão: Fábio Garcia