Quake (Multi), um abalo na indústria que ninguém podia prever

O último jogo da id Software em que John Romero e John Carmack trabalharam juntos é até hoje um dos mais importantes e influentes da história dos videogames.

em 15/07/2014

Quake (Multi) é uma bagunça. Sua ambientação mistura elementos medievais, góticos e de ficção científica. Os inimigos parecem ter saído de contos de H.P. Lovecraft. A trilha sonora, composta por Trent Reznor, da banda Nine Inch Nails, é puro rock industrial. O design dos mais de 36 níveis não seguem um objetivo comum, indo de mapas labirínticos, passando por grandes espaços abertos cheios de inimigo e às vezes chegando a parecer um survival horror, com corredores estreitos, armadilhas e pouca munição. À primeira vista, o jogo é um produto extremamente incoeso e com ideias conflitantes.


Tamanha confusão não é de se espantar, levando em consideração o longo e conturbado processo de desenvolvimento do título. Suas primeiras ideias surgiram em 1990, quando foi anunciado no terceiro episódio de Commander Keen, primeiro título da id Software, lançado para computadores. Na época intitulado Quake: The Fight for Justice, o jogo seria um adventure 3D medieval, inspirado numa campanha de Dungeons & Dragons dos desenvolvedores.
256 cores!
O estúdio julgou que a tecnologia da época era insuficiente para trazer o projeto à vida e decidiu engavetá-lo. Quando finalmente começaram a trabalhar nele, em 1994, o estado da equipe não era dos melhores. Tom Hall, um dos fundadores da empresa e diretor criativo de seu maior sucesso até o momento, Doom (Multi), havia abandonado o estúdio no ano anterior. Os outros fundadores, por sua vez, alimentavam um clima de crescente animosidade. John Carmack queria privilegiar um desenvolvimento rápido, enquanto John Romero exigia que sua visão fosse seguida sem sacrifícios, independente do tempo necessário.

Sem uma direção unificada, aquele acabou se tornando o projeto mais longo da id Software. Enquanto Doom II: Hell on Earth (Multi) levara 9 meses para ser concluído, Quake ficou 18 meses em produção — números pequenos para os padrões modernos, mas grandes e penosos para a época. Meses de trabalho foram jogados no lixo até que se chegasse num consenso sobre o que se deveria fazer. O produto final lembrava muito mais os outros FPSs do estúdio do que o adventure medieval originalmente concebido. Desgastado e infeliz com o resultado, Romero viria a se desligar da companhia logo depois.
Provavelmente ele desafiou Carmack em uma partida deathmatch antes, valendo a liderança do estúdio

Apesar de todo esse retrospecto ruim, o jogo foi um tremendo sucesso de público e crítica, elogiado pelos gráficos, level design e trilha sonora. Mais do que isso, tornou-se uma das obras mais influentes da indústria e cultura gamer.

Quake está em todo lugar


A influência de Quake não se limitou apenas aos FPSs. Na verdade, ele trouxe poucas mudanças de fato para o gênero. A campanha singleplayer era magnífica, mas não exatamente revolucionária. Outros games que viriam nos anos seguintes, como System Shock e Half-Life (ambos para PC), foram mais inovadores. As novidades de Quake estavam em outros fatores, tangentes à campanha principal, mas que tiveram impacto muito mais profundo na indústria como um todo.

Primeiramente, este foi o primeiro jogo de tiro totalmente em 3D da história — diferente de seus antecessores, que possuíam apenas uma perspectiva tridimensional. Seu visual escuro e marrom pode não surpreender as gerações mais novas, mas em 1996 eles eram inacreditáveis. Tal característica foi usada nas estratégias de venda não apenas do jogo, mas também de peças de computador. Não é exagero dizer que Quake foi o maior responsável pela rápida adoção de placas gráficas nos anos 1990. Empresas como a falida Voodoo Graphics anunciavam como um dos maiores pontos fortes de suas GPUs a capacidade de rodar o shooter na incrível (para a época) resolução de 640x480 pixels.
À esquerda, Quake rodando em uma VGA comum;
à direita, o resultado com a placa 3Dfx, da Voodoo Graphics

Mas a maior mudança estava “debaixo do capô”. A engine que permitia esse mundo em três dimensões é até hoje considerada uma obra-prima da programação. Muitos motores gráficos famosos que surgiram depois foram baseados diretamente nela, tais como GoldSource (Half-Life), Source (Half-Life 2), ou mais indiretamente, como IW Engine (Call of Duty), baseada na id Tech 3, que por sua vez é baseada na Quake Engine. Mesmo com 18 anos de idade, partes do código de Quake são usadas praticamente sem alterações em vários jogos.
Os muitos jogos e engines baseados em Quake.

As contribuições técnicas não se limitaram ao departamento visual. Na verdade, as mais importantes foram em outro setor: o multiplayer online. Poucos meses depois do lançamento, o jogo recebeu um update chamado QuakeWorld, que, pela primeira vez, tornou uma partida online com vários jogadores algo acessível. Seu impressionante algoritmo de previsão contornou problemas comuns das redes da época, tais como alta latência e baixas velocidades.


Rapidamente vários fãs começaram a criar servidores dedicados para jogar com amigos e colegas. Uma ferramenta incluída no update, chamada QuakeSpy, tornava a tarefa de achar tais servidores algo relativamente simples. Enfim era possível jogar online a qualquer hora, sem a necessidade de se marcar previamente ou ter que configurar manualmente endereços de servidores.

A ferramenta QuakeSpy seria mais tarde relicenciada sob a marca GameSpy e incorporada como provedora de partidas online de vários outros jogos famosos como Borderlands, Halo e Battlefield. Até o encerramento de suas atividades em abril de 2014, mais de 800 jogos usaram os serviços da empresa para prover partidas online.

Servidores dedicados e conexões automáticas são o padrão hoje em dia. Em 1996? Foi uma verdadeira revolução. Estamos falando de uma época em que a web ainda era uma infante e muitos usuários ainda usavam a Usenet e BBS para se comunicar. Quake tornou acessível jogar e comunicar-se online, servindo de pedra fundamental para os primeiros clãs de videogames.

Quake é para todos


A cultura gamer como conhecemos foi moldada por essas comunidades. Os e-sports, por exemplo, deram seus primeiros passos em grupos competitivos do jogo, muito antes de Dota 2 ou League of Legends popularizarem o termo. Equipes como a The Rangers descobriram técnicas como bunny hoping (pular repetidamente, em vez de correr, para cobrir distâncias maiores em menor tempo) e rocket jumping (usar o recuou de explosões para pular mais alto), que tornaram-se obrigatórias em praticamente qualquer partida deathmatch.

O empenho desse e outros clãs chamou a atenção de empresas grandes como a Microsoft que, em março de 1997, patrocinou o evento Red Annihilation, o primeiro grande campeonato de Quake. A premiação foi nada menos do que a Ferrari 328 GTS de John Carmack, conquistada por Dennis “Thresh” Fong.
Thresh na Ferrari que ganhou de John Carmack
Outros grupos tiveram influência sobre as comunidades de speedrun. Pequenos filmes com os melhores tempos em cada nível do jogo, tais como Quake done Quick, Quake done Quickest e Quake done Quick with a Vengeance eram projetos colaborativos, feitos com a ajuda de vários fãs. A popularidade de alguns desses vídeos os levou a serem distribuídos com revistas de jogos e publicados e sites de notícias da época.

A cultura dos mods e machinima também tem suas raízes em Quake. O jogo foi um dos primeiros a serem lançados com modificações em mente e podia ser alterado com relativa facilidade fazendo-se uso da linguagem interpretada QuakeC, criada especificamente para programar partes do jogo rapidamente. Em pouco tempo surgiram grandes mods como Team Fortress, que fez tanto sucesso que foi comprado pela Valve depois.

Quake é eterno


É impossível subestimar a importância que Quake teve para a indústria, em vários aspectos. Ele criou as bases do multiplayer moderno, moldou a comunidade gamer como conhecemos e tem partes de seu código sendo usadas em jogos modernos até hoje.

Este jogo foi, de fato, um abalo.


Revisão: José Carlos Alves
Capa: Doug Fernande

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