A objetificação sexual na indústria gamer; quando o machismo e o femismo vão longe demais

em 11/08/2013

Não é novidade para ninguém que o corpo humano é uma das maiores ferramentas de marketing da história. A beleza natural que tanto os homen... (por Fellipe Camarossi em 11/08/2013, via GameBlast)

Não é novidade para ninguém que o corpo humano é uma das maiores ferramentas de marketing da história. A beleza natural que tanto os homens como as mulheres têm a oferecer tem sido por eras associado a chamar atenção, e todo e qualquer tipo de publicitário tem plena ciência disso. Vemos belas mulheres e homens em propagandas de roupas, bebidas, marcas e tendências. É natural, e ainda assim, é ofensivo.

Chega a ser insultante pensar que se tornou algo comum e rotineiro vermos o corpo humano como apenas mais um objeto numa vitrine, apelando sexualmente para seus atributos de forma a atingir um público maior. É uma tendência comum, infelizmente, e ainda assim uma jogada limpa. Isso já permeia nossa mídia em todas suas vertentes, e isso não exclui os nossos queridos jogos. Há quem se ofenda, há quem aceite, há quem acredite que é tempestade em copo d’água dissertar sobre isso e há quem ache que é uma boa pauta para uma reflexão.

Eu me encaixo nesse último grupo.

As curvas que movem as massas

É hipocrisia dizer que você nunca olhou duas vezes pra um corpo bonito, independente de onde ele estivesse. Todo mundo sabe disso, e sabe que independente de sua classe social, opção sexual e credo, você é humano e aprecia beleza por instinto. Por este motivo é comum na mídia contemporânea colocar, mesmo que sem motivo, mulheres com vestimentas diminutas e/ou homens com físicos invejáveis. Isso se chama “fanservice”, literalmente, “serviço aos fãs”.

A Sorceress, de Dragon's Crown (PS3) tem um grande... desenvolvimento de personagem...
Vocês leitores já devem estar habituados a esse tipo de filosofia, visto que é algo até que comum no mundo dos jogos como também no dos animes e mangás, e todos já consumimos algum produto da mídia que se utilizava desse recurso. Os seios saltitantes de Mai Shiranui (The King of Fighters), o visual provocante de Morrigan (Darkstalkers) e nem mesmo Final Fantasy foge dessa estratégia; Tifa Lockhart (Final Fantasy VII) é o exemplo mais conhecido, enquanto Lightning (Final Fantasy XIII) é a polêmica mais recente, onde o diretor de Lightning Returns: Final Fantasy XIII requisitou que seus seios fossem aumentados (além dos pacotes de vestimentas nem-um-pouco sugestivas para a heroína, como podem ver à seguir).

Me abstenho do dever de colocar um comentário nesta imagem para não arriscar o meu namoro.
Essa armadura
defende muito bem
os seus ombros.
Alguns desses casos de fanservices chegam a ser ridículos justamente pela impraticidade de seu equipamento. Veja bem, é extremamente comum vermos em jogos heroínas trajando armaduras metálicas que cobrem apenas partes do corpo, deixando uma boa parte de pele a mostra, sejam nas pernas, na barriga, e em alguns casos sendo até mais extremo. Se a armadura serve justamente para proteger o cavaleiro, qual a utilidade de usar um equipamento assim, cheio de aberturas? Mas é algo que poucos pensam, afinal, a personagem fica linda desta forma.

Às vezes, esse apelo para a beleza da personagem é tão intenso que perde-se o foco da aventura para dar total atenção aos seus dotes. Chega a parecer que é intencional da personagem, criando uma má fama para mulheres, dando a impressão de que todas usam de sua beleza como uma arma de distração, acabando por criar dois dos piores estereótipos de mulheres que permeiam a mídia: as lindas e manipuladoras, e as donzelas em perigo.

A princesa que aguarda seu cavaleiro

Embora isso fuja do ponto da objetificação sexual, continua sendo uma expressão de objetificação feminina, transformando a mulher em um troféu a ser conquistado. É algo recorrente da nossa história a donzela em perigo, servindo de motivação para que o protagonista encontre forças em sua busca. É claro que, ao pensar nesse tropo, é comum relembrar dos contos de fada, mas isso é algo que já está instaurado no meio gamer faz muito tempo, inclusive servindo como um vínculo com o nosso nostálgico passado das primeiras gerações. A ficha não caiu ainda? Pauline mandou um abraço.

Apenas mais um dia em
Mushroom Kingdom.
É, meus caros, desde a era de Donkey Kong (NES) que temos a donzela sendo o ponto chave de histórias. Sua sucessora espiritual, Princesa Peach (Mario), é o principal exemplo deste tropo, sendo raptada em praticamente todos os jogos da série principal da dupla de encanadores. As princesas de Castle Crashers? Também. Zelda (The Legend of Zelda) por vezes cai nesta mesma categoria, embora a princesa de Hyrule tenha se mostrado várias vezes como tão importante quanto o próprio herói – como é o caso de Tetra em The Wind Waker.

Este tipo de situação recorrente cria o estereótipo de que mulheres são inofensivas, frágeis e que precisam que um cavaleiro – ou encanador – venha ao seu resgate. Colocar a personagem apenas como uma medalha ou troféu que deve ser conquistado chega a ser um descaso com o desenvolvimento do personagem feminino, tão capaz quanto o masculino. Infelizmente, são valores recorrentes de uma sociedade machista e que traz há tempos o costume de ver a mulher como uma peça de troca.
Atenção: o trecho a seguir possui revelações sobre o enredo (spoilers) de Fire Emblem: Awakening (3DS). Leia por sua conta e risco!

Emmeryn não precisou
de apelo sexual, só
precisou se matar.
Essa visão está tão instaurada em nosso meio que é comum termos personagens femininas notáveis de duas formas: como alvos a serem resgatados ou como donzelas que se sacrificam por um bem maior – as vezes as duas coisas. A rainha Emmeryn (Fire Emblem), em determinado momento, prefere dar sua vida ao arriscar ao de sua família e povo, e isso após um longo embate tentando resgatá-la. Algo semelhante ocorre com Zelda em Twilight Princess, onde a monarca prefere se render ao iniciar um genocídio com seu povo, e, em determinado momento, ceder os seus poderes para que Midna ajude Link em sua busca.

“Mas se algumas personagens até se sacrificam para o bem geral, isso não é um passo para tirar essa objetificação?”, bem, é. Tanto que, por vezes, a indústria gamer nos surpreendeu com algumas personagens que fugiam esse estereótipo e quebraram a cara de muitos homens, ao mostrar que elas podiam ser igualmente capazes... agindo como homens.

Cheque seu privilégio: o poder feminino

Mesmo com os estereótipos, existem jogos por aí que fizeram queixos caírem com protagonistas femininas e de qualidade, sem a necessidade de chamar atenção por seus atributos corporais. Estas mulheres mostram o potencial igualitário do sexo feminino, demonstrando que o arquétipo de gênero é ultrapassado e, embora existam coisas que cada sexo possa fazer melhor, na essência eles são iguais.

Tudo bem que ninguém esperava
que houvesse uma mulher aí dentro.
O maior exemplo disto é a lendária Samus Aran (Metroid), que todos pensaram ser um homem até o fim da jogatina, onde esta retira sua armadura. A surpresa foi gigantesca, já que isso comprova que esta agia como o esperado de um protagonista masculino. Outros exemplos incluem Lara Croft (Tomb Raider) e todas as protagonistas da série Pokémon. Estas em especial salientam bem que as mulheres são tão capazes quanto os homens, visto que a trama não muda nem uma frase por você jogar como uma garota.

A protagonista de Metroid em especial foi quem mais sofreu com essa visão distorcida sobre as mulheres nos jogos. Em Metroid: Other M (Wii), Samus entra em contato com um lado mais emocional de si, é mostrada sua história e o seu lado mais feminino – mas nem por isso deixa de ser tão incrível como nos jogos anteriores. O resultado? Reclamações infinitas sobre como o jogo havia se tornado uma “novelinha”, mesmo tendo uma profundidade de história nunca antes vista na franquia.

Ah, e se ousar citar Super Princess Peach (DS) como um exemplo, sinto muito, mas você não faz ideia do que está falando. Quem jogou o título sabe que os poderes de Peach no decorrer do jogo todos envolvem a instabilidade emocional da princesa, uma sátira para o temperamento feminino. Seria hilário, se não beirasse o ofensivo.

...e muito carisma,
muita personalidade...
Alguns produtores chegam a pensar que é um exagero querer essa igualdade de gênero nos jogos e usam isso como fonte de piadas. Em Earthworm Jim temos a princesa “What’s-her-name” (“Qual-o-nome-dela” em tradução literal), a donzela que deve ser resgatada pelo protagonista. A brincadeira mostra como as moças à serem resgatadas são irrelevantes, literalmente apenas troféus, visto que por muitas vezes até seus nomes passam despercebidos (como é o caso de Castle Crashers e, por muito tempo, o de Pauline em Donkey Kong).

Existem jogos que declaradamente usam desses artifícios da objetificação, como o da donzela em perigo, pelo quesito nostálgico. Não dá pra culpar, alguns dos maiores clássicos da indústria gamer contavam com isso, mas ainda assim existem outras formas de abordar o público saudosista. Jogos como Superbrothers: Sword & Sworcery (iOS/PC) apela na nostalgia com seu visual retrô e traz uma protagonista feminina em seu ápice. É triste, mas parece que o machismo gamer ainda precisa ser muito trabalhado, dentro e fora das telinhas.

Duas opções: assédio ou reclusão

Não está fácil nem pra elas.
A propósito, nesses quadrinhos
fanservice.
Entre em uma comunidade gamer e diga que é uma garota; ou você vai ser recriminada, chamada de “attwhore” (literalmente, “vadia por atenção”) ou vai ser assediada por todos os jogadores presentes. É fato. Os rapazes parecem ter uma dificuldade em aceitar que estamos em uma era onde videogame não tem gênero ou idade. E aí reclamam da falta de jogadoras reais.

Isso se estende ao mundo real de maneira assustadora. Durante a E3, houve casos de jornalistas que foram assediadas fisicamente por seguranças e até desenvolvedores, como se elas fossem uma espécie em extinção. No Facebook ocorre o mesmo, se uma moça qualquer compartilhar algo sobre jogos, ela vai ser automaticamente taxada em uma das duas classificações preconceituosas.

Atenção: como esclarecimento, não estou generalizando, estou expondo um fato que ocorre diariamente. Se você não se aplica a estas citações, meus parabéns e seja bem vindo ao clube.

O pior é que existem garotas que sabem das facilidades de ser uma garota gamer aceita em uma comunidade de jogadores; os rapazes te ajudam mais, te tratam pelo “sexo frágil” e lhe fornecem recursos e ajuda. Cansei de ver esse tipo de coisa em MMORPGs como Ragnarök Online (PC), e por este motivo existem tantas pessoas que abusam dessa “boa vontade” dos homens, sejam essas pessoas mulheres ou homens.

Me parece um bom exemplo de attwhore. Uma gamer saberia que não é pra isso que serve o controle.
Sim, há rapazes que seguem essa linha de raciocínio e jogam como garotas para ser bem tratados. Bom, se qualquer leitor já teve contato com MMORPGs deve saber disso. As famosas “shemales” fazem jus à trigésima regra da internet, que diz: “Não há garotas na internet”. Essa regra diz que o gênero de qualquer pessoa é questionável na rede mundial, um aviso para tomar cuidado com aquela garota que pede excessivo suporte naquele jogo que você está viciado; pode ser um barbado abusando de sua boa vontade e carência.

A seguir está um dos vídeos de Jaltoid, um usuário do Newgrounds, que fez vídeos abordando essa temática das garotas gamers. Apesar do áudio em inglês, é possível resumir o vídeo como um conjunto de arquétipos já a muito conhecidos no meio gamer; o nerd que nunca falou com uma garota pessoalmente, a garota attwhore que usa o jogo para satisfazer seu ego, a garota gamer de verdade que só quer jogar e o rapaz cansado disso tudo.


Como podem ver, o que não faltam são estereótipos que demonstram a objetificação de um gênero sexual, provocando discussão para horas a fio sobre a igualdade feminina neste mercado tomado por rapazes. Entretanto, é agora que eu peço, por favor, não nos odeiem. Nós não queremos seu mal, só queremos compreensão.

Por um mundo gamer equilibrado

Não confundam predominância com totalidade, não é por causa de uma maioria inconsequente que todos agem da mesma forma. Se esse fosse o caso, eu não estaria escrevendo este artigo, e não teriam vários leitores que se identificam com o que escrevi aqui. Não é preciso misandria por causa de um tratamento errôneo aplicado por alguns homens, é instinto natural do ser humano afugentar o que lhes é estranho – e acreditem, em pleno século XXI, ainda é estranho ver a população feminina crescendo nos jogos.

A cada dia vemos mais figuras femininas de poder ganhando espaço na indústria, sejam como personagens, sejam como mulheres. Nós não vemos, mas empresas como Nintendo, Sony e Microsoft possuem várias mulheres em altos cargos, mas por algum motivo elas não são levadas às apresentações ao público. Talvez seja um machismo conservador, talvez existam outros mais capacitados, não há como saber, mas basta saber que elas estão lá.

...gente, sério, qual a necessidade disso?!
Todo equilíbrio é difícil de ser alcançado e não vai ser tão rápido que os preconceitos irão descer, mas o primeiro passo é parar de ver o corpo humano como um objeto de venda e marketing. Não somos parte de uma vitrine e o respeito deve ser uma predominância. Não se deixem levar pelo fanservice, a realidade e a ficção andam paralelamente mas diferem muito. No fim das contas, não vai ser uma personagem sexy que vai alavancar suas vendas, vai ser o que o seu jogo tem a oferecer ao mercado.

Nisso sim arte imita a vida: o que importa mais não é o que se tem por fora, mas sim o conteúdo.
Revisão: Ramon Oliveira de Souza
Capa: Daniel Machado

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