Há muito tempo se discute a relação entre cinema e games. É verdade que esta mídia tão querida por nós há muito se inspira na sétima arte para nos contar suas histórias. Mas o que difere uma da outra? Será que um dia elas tornar-se-ão tão parecidas que será difícil discernir?
A cada geração de consoles que surge, os desenvolvedores de jogos buscam cada vez mais contar histórias melhores e conseguir um poder gráfico o mais realista possível. Tudo isso mirando um entretenimento mais artístico, complexo e com maior imersão. E para isso vemos surgir nos jogos muitas inspirações nas artes, que vão desde literatura até a mais influente nos jogos, o cinema. Não falo aqui daqueles jogos baseados em filmes. Falo da inspiração na decupagem, direção, atuação, roteiro e fotografia.
Foi nesta última geração de consoles (PS3/X360) que vimos o maior crescimento da influência desses aspectos no produto final de um jogo. A maior prova disso é o jogo Heavy Rain e sua proposta de ser um “filme interativo”. Proposta essa já explorada antes pelo mesmo diretor, David Cage, em Indigo Prophecy e que voltará ao assunto futuramente em Beyond: Two Souls. O jogo conta uma história complexa, cheia de mistérios e emoções intensas que não deve nada a bons filmes policiais. Porém, falta ao jogo uma decupagem mais interessante nos trechos de jogabilidade. Apesar de ter seus momentos geniais, a direção falha em nos entregar planos mais intensos durante alguns momentos em que o jogador está no controle do personagem, optando por usar o comum “plano geral” em terceira pessoa na maioria dos casos. Mas o sucesso do jogo vem de outro lugar, a dramaturgia. Aqui, as armas e os militares, os heróis e as mocinhas dão lugar a um drama mais real: um pai lutando para recuperar seu filho enquanto lida com o trauma da morte do outro. Continua sendo uma clássica jornada do herói, porém com um tema mais concreto para a realidade que vivemos. Hoje, os gráficos de Heavy Rain já parecem datados e conseguimos perceber que a captura de movimentos e as atuações melhoraram muito desde então; além disso, a mecânica usada no jogo é alvo de controvérsia.
Por outro lado, jogos como Uncharted 2 e 3 cumprem bem seu papel “cinematográfico”. Nenhuma das duas histórias é tão complexa quanto em alguns outros jogos. Mas, considerando que filmes de ação/aventura também não costumam contar com o mais profundo dos enredos, e ainda, cinema e games como uma mídia só, Uncharted estaria no mesmo patamar de um Indiana Jones, por exemplo, que é claramente uma inspiração tanto para a história como para o personagem principal do game. A série Uncharted destaca-se, principalmente, pela excelente atuação nas dublagens, decupagem incrível mesmo em momentos de jogabilidade e ainda uma maneira interessante de contar suas histórias através de idas e vindas na cronologia, algo raramente usado nos games, mas muito comum nas telonas. A jogabilidade, porém, se resume a escalar, correr, atirar e resolver quebra-cabeças ao longo do jogo. Algo muito simples e nada inovador no mundo dos games. Em seu último jogo, The Last of Us, a Naughty Dog segue um pouco o mesmo caminho, mas com enredo e jogabilidade mais maduros. A sequência inicial é de cair o queixo e deixa muito filme de zumbi no chinelo. O envolvimento pessoal do jogador com o personagem é muito maior e a harmonia com a mecânica o torna uma grande experiência. Junto com o novo Tomb Raider, The Last of Us usa também um novo truque (e que logo deverá se tornar comum), para conseguir um visual mais cinematográfico. Ambos abriram mão do HUD sempre presente na tela, para algo que só apareça conforme a necessidade, criando assim uma imagem mais “limpa”, sem muitas distrações. Somando isso ao efeito de poeira e chuva na quarta parede, temos uma experiência mais próxima a de um filme.
Kane & Lynch 2: Dog Days optou por uma estética que remetesse aos vídeos amadores de YouTube. Com uma edição e visual que parecem mais “toscos” e inserindo imagens de câmeras de segurança, o resultado é muito parecido com um movimento recente do cinema, os falsos documentários. Filmes como Bruxa de Blair, Atividade Paranormal e Cloverfield, só para citar alguns, usaram do mesmo princípio para aproximar o público da história e passar a sensação de realismo. Isso é comum quando filmes tem um orçamento muito baixo e precisam contar com a criatividade para resolver problemas técnicos e narrativos. Isso ocorre também no nosso querido mercado de games, produtoras indies com limites orçamentários e tecnológicos contam com a criatividade para renovar a indústria. Já vemos hoje resultados disso em jogos como Dear Esther e Journey, entre outros, que mostram do que jogos são capazes quando se tenta criar uma experiência nova.
A Bruxa de Blair |
Ok, já vimos que as duas mídias tem muitas semelhanças, uma se inspira na outra e as duas usam de artifícios parecidos para conseguir efeitos semelhantes. É possível, então, que as duas acabem por se tornar uma só? Não. O cinema tem como um dos seus objetivos entreter contando uma história, deixando o espectador apenas apreciar aquilo que lhe é mostrado. Obviamente, muitos filmes procuram quebrar a quarta parede, seja colocando os atores para falar com a câmera (espectador) ou deixando partes da trama livres para a interpretação. Os jogos, porém, vieram de um princípio básico que é a interação. Sem ela os jogos deixam de ser... jogos. Eles tem como objetivo colocar o espectador como parte da equação da trama, ou até a falta dela. Alguns jogos fazem isso melhor que outros, claro. Mas mesmo que as possibilidades sejam apenas pular, atirar, escalar ou até andar por um labirinto comendo fantasmas, está na mão do jogador-espectador que o herói/personagem desenvolva as habilidades necessárias para completar seus objetivos. Até um pouco da personalidade do personagem acaba refletindo a do próprio jogador/espectador, se esse opta por ser mais agressivo ou cauteloso durante os desafios que aparecem, sendo Far Cry 3 o mais recente exemplo disso, deixando o desfecho da trama na mão do jogador, levando em consideração sua própria experiência ao longo do jogo.
Heavy Rain tentou, através de quick time events (ações contextuais com limite de tempo) mudar a forma como interagimos com o jogo, buscando encaixar melhor a interação em uma obra focada na cinematografia. Algo que até hoje gera muita controvérsia, pois tira do jogador a possibilidade de desenvolver as habilidades necessárias para superar os desafios, reduzindo isso apenas a reflexos rápidos. Porém, foi o próprio The Last of Us que me mostrou que já estamos muito perto de uma experiência cinematográfica sem necessariamente mudar os paradigmas aos quais estamos acostumados, basta criatividade e cuidado com a obra. The Last of Us vai um pouco contra o que David Cage tem feito efetivamente com seus jogos. Em Heavy Rain (e é possivel observar isso na demo divulgada de Beyond: Two Souls, também) é perceptível que na sua busca por convencer as pessoas de seu “drama interativo” a própria narrativa acaba sendo comprometida com cenas desnecessárias ao todo, usando de artifícios baratos (leia-se “encheção de linguiça”) para aproximar os jogadores de seus personagens, seja mostrando eles arrumando a mesa do jantar ou trocando a fralda de um bebê, e no caso de Beyond, uma cena inteira da personagem principal tocando um violão. Apelidamos carinhosamente esse tipo de coisa no cinema de “masturbação”. David Cage esquece que dinâmica, ritmo e concisão também são ferramentas importantes do cinema, algo que a Naughty Dog faz muito bem com seu último jogo, utilizando apenas a mudança de perspectiva em alguns pontos da trama, por exemplo. TLoU também da outro tapa na cara de David Cage mostrando que uma situação, nos moldes relativamente tradicionais de jogo, onde você se encontra apenas com uma bala na arma, ou incapacitado, pode ser muito mais significativa para a narrativa e efetiva para a tensão do momento do que um simples apertar de botões no momento ou ritmo certo.
2001: Uma odisséia no espaço |
Revisão: Bruno Nominato
Capa: Douglas Fernandes