Entendendo o conceito
Para começar este texto, é importante que o leitor esteja plenamente ciente do que se trata o termo “dualidade”. Essa palavra é a representação de dois lados opostos, mas conectados por uma via de mão dupla – ou seja, tanto um quanto o outro podem migrar entre si. Dessa maneira, encontramos caminhos que, embora sejam completamente contraditórios um em relação ao outro, são interligados e dependentes para a preservação de um equilíbrio e uma harmonia – e somente por meio desse equilíbrio que as pessoas conseguem ver o mundo em plena racionalidade.Até esquerda e direita são questão de ponto de vista. |
Um jogo que aborda isso muito bem é toda a série Kingdom Hearts, em especial Birth by Sleep (PSP) e Dream Drop Distance (3DS), que enfatizam muito como o equilíbrio de escuridão e luz devem ser um fator determinante na compreensão do Universo. O vilão, Master Xehanort, crê que a escuridão deve ser assimilada e usufruída como uma ferramenta, e não temida. Seu antigo colega, Master Eraqus, discorda e acredita que a escuridão deve ser extirpada da existência, o que leva à frase icônica do vilão: “Eraqus foi dominado pela luz”.
Mesmo precisando atacar e matar seus próprios aprendizes, Eraqus não hesita em prol da luz. |
Na situação apresentada, temos uma pessoa que deixou a sua fé impensada ser um empecilho para a compreensão da verdade, e essa mesma luz que ele julgava ser a salvadora o cegou para os problemas de seus próprios aprendizes, tornando-o impotente perante o fim catastrófico dos eventos de Birth by Sleep. Ao relacionar essa abordagem à nossa sociedade, é possível traçar uma semelhança com muitas religiões que pregam o amor ao próximo; porém, em contrapartida, impõem uma série de preconceitos em relação a esse “próximo” que deveriam estar amando.
Assim, apresenta-se a primeira característica essencial a ser analisada no estudo de dualidade: a perspectiva.
O herói-vilão, o vilão-herói
Luz e trevas andam juntos sejam heróis, sejam vilões. |
Duas visões diferentes de uma mesma cena criam diferentes modos de uma história ser contada. Por muitas vezes, o suposto vilão está sendo movido por ideais que ele crê serem os melhores, mas é malvisto pelo resto do povo – incluindo o suposto herói. Em outros casos, ainda é possível que haja o indivíduo que começa com um ideal, mas, em consequência de frustrações ou traumas, acaba distorcendo seu caminho sem perceber. No fim das contas, o herói vira vilão sem nem sequer notar a sua mudança, pois ele continua acreditando que sua visão é a certa.
Quando a vingança se diferencia de justiça? |
A maneira com a qual vemos a situação acima nos faz repensar se Drácula estava totalmente errado de ter seu ódio sobre o mundo e se ele realmente era um vilão a princípio. Esse tipo de pergunta abre a mente do jogador para toda uma gama de possibilidades em cada ensinamento que teve em sua vida. Ao criticarmos certa ação, já nos perguntamos a história por trás dela? E quem pode afirmar se o ladrão do mercado é realmente um vilão? É nesse ponto que exploramos a segunda característica determinante da dualidade: a moral.
O preto, o branco e o cinza
Toda luz tem escuridão, toda escuridão tem luz. |
Há pessoas que dizem que ou você é totalmente bom ou é totalmente ruim. “Uma maçã parcialmente apodrecida é uma maçã podre; ou você é bom ou é mau”, é a frase que define a “moralidade preto/branco”, em que só se pode ser um dos extremos. Pessoalmente, eu acredito que essa seja uma visão conservadora e limitada. Acredito que a mesma situação deva ser vista de muitas maneiras, aplicando-se diferentes perspectivas aos problemas. É assim que se desenvolve sua moral de maneira plena (“moralidade cinza”).
Bela maneira de conquistar pelo medo. |
São situações como essa que fazem a pessoa explorar todas as vertentes de sua própria personalidade. Outro exemplo é a série de jogos Grand Theft Auto, em que o protagonista é colocado em um mundo onde pode ser um criminoso de marca maior. O jogo não impõe que você aja dessa maneira, mas é quase automático que o jogador acabe tendendo a esse lado. Muitas pessoas exploram seu próprio lado negativo nesse tipo de jogo; mas, em vez de deixarem isso refletir em sua personalidade, é ali que descarregam possíveis impulsos que aprenderam a ocultar.
Acho que deu pra resumir bem GTA. |
Tanto em Black & White como em GTA a pessoa pode desenvolver melhor a própria mentalidade e visão crítica sobre quem é e como sua moral deve agir. Após aprender a analisar diferentes perspectivas e desenvolver a própria moralidade de modo a ter um senso crítico, chega o ponto culminante da dualidade: a decisão.
Você faz sua escolha, sua escolha faz você
Depois de desenvolver uma boa análise de determinada situação utilizando-se dos seus próprios conceitos, a pessoa se vê obrigada a tomar uma decisão. A vida é feita de escolhas, que moldam completamente o futuro e dependem do senso crítico para resultar de maneira positiva ou negativa em relação a si e a toda a sociedade. É então que lidamos com as consequências de tudo que fazemos. É algo que aprendemos desde a infância até a fase adulta – e boa parte disso se passa nos games.Ou destruir tudo. Depende de você. |
Outro exemplo? Soul Nomad (PS2). Nesse título, Revya (o personagem principal) tem selada dentro de si uma criatura ancestral e poderosíssima denominada Gig. Essa criatura deseja poder usar o corpo de seu hospedeiro livremente; mas, para isso, Revya deve ceder à tentação e usar o poder de Gig. No decorrer da trama, o jogador se depara com a constante decisão de usar ou não os poderes da criatura para facilitar determinadas situações, embora saiba que isso pode – e vai – comprometer o personagem futuramente. Além disso, após concluir o jogo uma vez (em um dos muitos finais decididos pelas escolhas do protagonista), na segunda ida você tem a opção de ceder ao controle de Gig logo no começo, assim iniciando um caminho totalmente novo e repleto de destruição e violência.
O botão "Gigfy" é a tentação constante de poder e corrupção. |
São muitos os exemplos que posso citar sobre jogos que exploram a decisão do jogador para o desfecho da trama (Mass Effect, como muitos leitores já devem estar pensando ao ler isso, é um ótimo exemplo), e essa é uma maneira excelente de desenvolver a mente do jogador perante a sociedade em que vive, pois muitas vezes a decisão do personagem é realmente a decisão do jogador – e é essa justamente a intenção do desenvolvedor ao permitir essa liberdade. Afinal, não pode haver uma decisão se não houver ao menos dois caminhos.
E de volta à realidade
Após essa jornada pelo mundo dos jogos, podemos juntar tudo que aprendemos até então e colocar em prática. Esses games serviram como um treino para o seu cérebro para que aprendesse como conceituar suas escolhas, como superar preconceitos e entender diferentes modos de ver o mundo e, por fim, assumir uma postura mais crítica e coerente com os problemas. O aprendizado oferecido por essas experiências é incalculável.Bilhões de pessoas, bilhões de histórias, bilhões de pontos de vista. |
É algo natural da humanidade crescer e evoluir a partir de tentativa e erro, porém vivemos em uma sociedade que critica e recrimina qualquer erro e só quer saber dos seus acertos e o que você pode oferecer a ela. Por isso, aqui você tem essa liberdade: no jogo, não tem problema errar uma ou duas vezes. E você ainda pode fazer um teste da própria personalidade. Quem você é de verdade? Qual é a sua natureza? Como funciona a sua moral?
E então pessoal, cara ou coroa? |
O melhor de tudo é que não há uma resposta certa. O que realmente interessa é o que você, leitor e jogador, pode tirar desse aprendizado. Cada nova aventura lhe rende experiência. Cada um de nós terá uma resposta diferente para cada pergunta por causa de nossas diferentes perspectivas e histórias. Então eu só tenho duas perguntas para vocês:
Qual é o seu lado da moeda?
E, afinal de contas, o ladrão estava mesmo errado?
Revisão: Felipe Biavo